De vez em quando pego para ler antigos textos meus: cartas, diários, cadernos da infância e da adolescência. Nestes textos antigos, sempre encontro verdades que já tinha descoberto e esqueci que havia descoberto. Como se a verdade aparecesse e desaparecesse, estivesse coberta e fosse descoberta, estivesse velada e fosse desvelada e depois revelada de novo.


É possível pensar a verdade não como oposta à mentira (a verdade como adequação), o certo com relação ao errado, mas a verdade como descoberta, a verdade como algo que aparece e desaparece, está aqui e se oculta. No grego antigo e na Bíblia original – em grego – esta verdade era chamada de aletheia. 

Neste texto, descrevo sobre a verdade como aletheia, conceito muito importante para a psicologia fenomenológica e para a fenomenologia, em geral.

Para entendermos melhor o conceito de Aletheia, vou fazer referência ao texto “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” do filósofo alemão Martin Heidegger, que se articula em torno de duas questões: 

– Em que medida entrou a filosofia, na época atual, em seu estagio final? 
– E que tarefa ainda permanece reservada para o pensamento no fim da filosofia?

Devemos nos demorar no questionamento, pois sua finalidade não é a de reunir um conhecimento organizado como resposta, mas sim fazer com que tais questionamentos permitam uma transformação do pensamento. E é neste sentido que nos aproximaremos do conceito de alethéia, ou desvelamento.

O fim de cuja filosofia se fala é a filosofia entendida como metafísica. Esta pensa o ente em sua totalidade sob o ponto de vista do ser, da imbricação do ente e do ser. O ser do ente mostrou-se desde o inicio como o fundamento, arché, aítion, princípio. E isso é aquilo onde o ente como tal, é aquilo que é. O fundamento manifesta-se como sua presença.

Aquilo que a filosofia, em sua história, tentou em etapas, ou seja, expor as ontologias das diversas regiões do ente, as ciências assumiram como tarefa sua.

A metafísica abriu, então, espaço para a emergência das ciências, e é justamente neste desdobramento, que consiste na sua extrema possibilidade, que a filosofia encontra o seu acabamento.

O fim da filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-cientifico e da ordem social que lhe corresponde, passando a imperar o elemento racional e os modelos próprios do pensamento que apenas representa e calcula.

No entanto, será , o fim da filosofia, entendido como o seu desdobramento nas ciências, a plena realização de todas as possibilidades em que o pensamento da filosofia apostou? Haverá um pensamento que não pode ser nem metafísica nem ciência? O que permanece impensado?

Para Heidegger, a possibilidade mesma da metafísica nasce de um pensamento que não se esgota na metafísica, do qual ela como que deriva como de seu fundamento escondido, que foi abandonado ou esquecido.

Basicamente, a questão que então se coloca tem por eixo a questão da verdade, palavra que com o que se pretende traduzir tanto o sentido de alethéia, quanto a concepção platônica de verdade.

Através de toda a história da filosofia, o pensamento de Platão, ainda que em diferentes figuras, permanece determinante. A metafísica é platonismo, fala a linguagem de Platão.

Platão postula a identificação entre o ser e idéia. A idéia é o ser do ente, ou a essência que demarca a especificidade de todo ente particular.

Compreende-se a partir daí, que a verdade venha a ser alcançada na apreensão correta e adequada da idéia. A verdade se mostra, assim, como adequação, e encontra seu lugar no primado das razão e das subjetividade.

Porém, no fundamento esquecido da metafísica, do qual nos fala Heidegger, é pensada a verdade em um sentido mais originário do que adequação, e donde este ultimo deriva.

No poema filosófico de Parmênedis é nomeada a Alethéia :” tú, porém dever aprender tudo: / tanto o coração incocusso do desvelamento/ em sua esfericidade perfeita/ como a opinião dos mortais a que se falta/ a confiança no desvelado.”

Aqui, a alethéia é chamada de perfeitamente esférica porque girando na própria circularidade do circulo, no qual cada ponto começo e fim coincidem.

Alethéia, ou desvelamento, designa clareira. Esta garante, antes de tudo, a possibilidade do caminho em direção da presença e possibilita a ela mesma presentar-se. A Alethéia deve ser pensada como a clareira que assegura ser e pensar e seu presentar-se reciproco.

Por exemplo, podemos pensar em uma abertura, ou clareira, no meio de uma floresta. Esta abertura permite que se apresente o claro, assim como o escuro, a luz assim como a sombra, permite que a própria verdade se presentifique.

Por isso alethéia não pode ser identificada apenas como verdade, pois a verdade mesma, assim como ser e pensar, somente pode ser o que é, no elemento da clareira, portanto qualquer tradução de alethéia por verdade a estará reduzindo a um sentido estrito e limitado, que não corresponde ao que tal palavra  representava para os pensadores gregos, principalmente para os pré-socráticos.

Na posterior historia da filosofia tal sentido foi esquecido e abandonado com o pensamento platonico. Porém este esquecimento não se constitui em falha, negligencia ou acidente, pois a Lethé, o velamento, faz parte da A-lethéia, como o coração desta, faz parte de sua constituição.

Os questionamento sobre o fim das filosofia, entendida como metafísica, e da tarefa da filosofia, nos conduziram até o conceito de alethéia, ao questionamento sobre a abertura, ou clareira que permite ao ser do ente se manifestar, se presentificar, assim como a verdade, que não pode ser confundida com esta abertura.

Os questionamentos de Heidegger abrem um novo espaço para o pensamento filosófico. Ao buscar na origens das filosofia grega o fundamento que dá suporte ao pensamento Heidegger re-encontra a alethéia, desvela o “velamento” do próprio processo de pensamento de se velar e re-velar, e abre, realmente, deste modo, uma nova e interessante possibilidade.

Nova, enquanto diferente do nosso costume de pensar através de uma tentativa de adequação, e a primeira possibilidade, pois mesmo a adequação deriva da alethéia, conquanto só pode existir como verdade e assim como a verdade, neste espaço de abertura.