Olá amigos!

JD Lucas, do site monomito.org está com uma iniciativa incrível de publicar um livro colaborativo sobre o mito. A fim de ajudar na divulgação, compartilho com vocês o primeiro capítulo, “Introdução ao Mito” abaixo! Boa leitura!

Introdução ao Mito

Autor: JD Lucas

A primeira questão com que se defronta o indivíduo interessado no estudo do mito é a dificuldade em definir satisfatoriamente seu objeto de interesse. ¿O que é o mito? ¿De onde provem? ¿O que significa? ¿O mito realmente quer significar algo?

Essas e outras questões só podem ser respondidas se forem levadas em consideração as regiões do saber em que o mito possa estar implicado, no contexto das necessidades do seu pesquisador. Assim, para o materialista, por exemplo, o mito talvez queira significar uma transposição de certas questões da ordem imediata, quer dizer, da ordem dos acontecimentos reais, transfigura em linguagem fabulosa.

Para o místico, o mito talvez seja o invólucro, a casca de uma grande revelação a respeito de nossa condição cósmica, e bastaria saber desmontar esse jogo de peças encaixadas para ver surgir de seu interior a revelação pura pela qual se ansiava. Em verdade, quantos forem os indivíduos a se debruçar sobre o mito, tantas maneiras de vê-lo teremos. O mito é a Hidra de Lerna: mal lhe cortamos uma cabeça e outras duas surgem nos interrogando.

¿O que nos resta então? Ora, devemos tomar o mito como se toma o fogo. Sabendo que se está de posse da própria potência vital que arde em todas coisas. Uma postura reservada diante do mito só produziu literatura insossa e conclusões parciais que rapidamente puderam ser ultrapassadas. A partir desta dupla valência — do observador interferindo no objeto, do objeto interferindo em quem o perscruta — poderemos alcançar algum êxito na elaboração do que seja o mito, seu significado e sua abrangência em relação à onde estamos e aquilo que somos.

Enquanto fenômeno da linguagem, o mito se encarrega de registrar as ações dos entes primordiais que deram origem ao Cosmo, num tempo anterior à própria noção de tempo; mitos também falam sobre os fundadores da sociedade, das religiões, dos grandes sistemas de pensamento. São narrativas transmitidas de geração em geração sobre os fundamentos de nossos costumes, pensamentos, ideias, afetos, ações…

O Monte Olimpo

O Monte Olimpo

Por isso é comum haver mitos que expliquem a origem de fatos como a sexualidade, o advento da vida e da morte, a morfologia dos nossos corpos, da geografia de uma região, bem como outras questões inerentes à própria existência. Não há um mito que não esteja intimamente implicado na realidade. Nenhuma criação mitológica foi, até hoje, pura escamoteação do real, mas antes, expressão deste mesmo real, e que no entanto — veja só — o ultrapassa.

Para alcançar a condição de mito, um acontecimento deve conter em sua morfologia um dado número de questões específicas e uma certa maneira de tratar: seres primordiais, acontecimentos fabulosos, criação e destruição, linguagem simbólica etc. Sem esses elementos, um mito simplesmente não sobreviveria como tal.

Esta concepção do mito como dotado de linguagem simbólica é muito antiga, mas foi ampliada enormemente por grandes estudiosos da alma no decorrer dos últimos séculos. Mas antes de a própria ciência começar a admitir a participação do mito nas questões da biologia e da psicologia, este teve que passar por um processo de de-sacralização.

Os ideais iluministas propunham que a razão pudesse suplantar os conteúdos que não se prestavam às apreciações imediatas e que exibissem qualquer relação com um passado lúdico e religioso da humanidade. Um certo trauma do mundo ocidental, conduzido durante tanto tempo pela Igreja sob criminosa autoridade, foi talvez o grande mobilizador desse processo de de-sacralização.

Inúmeros avanços foram conquistados do ponto de vista da política e da ciência. O projeto do iluminismo preparou a Europa para a sua cidadania, muniu o seu povo de uma necessidade de estabelecer novos parâmetros para a vida em sociedade, relativamente livres do dogma teológico. Entretanto, este ideal falhou miseravelmente no que tange a tentativa de supressão do elemento irracional, com o que se quis uma eterna idade da luz.

Rapidamente descobriu-se que o escuro não podia ser suprimido por vontade própria, e seguiu-se um período de intensas descobertas no campo da mente humana, em especial a existência de um inconsciente dinâmico, independente, desconhecido, com frequência sabotador; porque não há luz sem sombra, e mil iluminismos são apenas vagalumes sob a imensidão noturna que os envolve.

Chegamos então à descoberta, ou às confirmações mais substanciais, de que o mito participa na intimidade de nossa vida criativa: seja na expressão religiosa, política, no entendimento dos fenômenos naturais e culturais, na relação entre os indivíduos e desses indivíduos consigo mesmos. O mito deixou de ser mentira, ou apenas afirmação de fé, para integrar a primeira ordem das disposições totalizantes da alma humana.

¿Pensar no mito nesses termos, de certa forma, não é matá-lo? ¿As sociedades arcaicas não vivem perfeitamente integradas aos seus mitos, sem questionar se a sua existência é fatual ou não? ¿O que nós, ocidentais urbanos, temos a ver com histórias completamente alheias ao nosso contexto de vida, sobre deuses que nunca vimos, heróis ambíguos, conquistas questionáveis?

¿Ou podemos enxergar no estudo do mito uma possibilidade de descoberta pessoal que contribui para ampliar o conhecimento e a própria experiência de existir no mundo, algo que se desdobra e se alastra — como fogo — para toda a realidade? Imagino que tanto uma quanto outra ideia se beneficiará da leitura deste livro, e teremos a oportunidade de desenvolver cada um desses assuntos com mais profundidade nas próximas páginas.

Continue acompanhando o livro no site – monomito.org