Os sonhos de infância e, em especial, os primeiros sonhos que podemos nos lembrar são muito importantes dentro da perspectiva da Psicologia Analítica – cujo criador foi Carl Gustav Jung.

No final de sua vida, Jung escreveu em colaboração com Aniela Jaffé sua autobiografia Erinnerungen, Träume, Gedanken (em tradução literal – Lembranças, sonhos e pensamentos) e que na versão brasileira ficou conhecido como Memórias, sonhos e reflexões.

 

É um livro muito interessante, muito fácil de ler, e por isso, recomendo a todos que se interessam pela psicologia e psicanálise.

 

Logo no começo do livro, Jung conta um sonho que teve por volta dos 3 anos de idade. Neste texto veremos o sonho e, logo em seguida a interpretação do mesmo e a importância na vida posterior do autor.

“O presbitério fica isolado, perto do castelo de Laufen, e atrás da quinta do sacristão estende-se uma ampla campina. No sonho, eu estava nessa campina. De súbito, descobri uma cova sombria, retangular, de alvenaria.

Eu jamais a vira antes. Curioso, me aproximei e olhei seu interior. Vi uma escada que conduzia ao fundo. Hesitante e amedrontado, desci.

Embaixo me deparei com uma porta em arco, fechada por uma cortina verde. Esta era grande e pesada, de um tecido adamascado ou de brocado, cuja riqueza me impressionou.

Curioso por saber o que se escondia atrás, afastei-a e deparei com um espaço retangular de cerca de dez metros de comprimento, sob uma tênue luz crepuscular. A abóbada do teto era de pedra e o chão, de azulejo.

No meio, da estrada até um estrado baixo, estendia-se um tapete vermelho. A poltrona era esplêndida, um verdadeiro trono real, como nos contos de fada.

Sobre ele uma forma gigantesca quase alcançava o teto. Pareceu-me primeiro um grande tronco de árvore: seu diâmetro era mais ou menos cinquenta ou sessenta centímetros e sua altura se aproximava de quatro ou cinco metros.

O objeto era estranhamente construído: feito de pele e carne viva, sua parte superior terminava numa espécie de cabeça cônica e arrendondada, sem rosto nem cabelos. No tpo, um olho único, imóvel, fitava o alto.

O aposento era relativamente claro se bem que não houvesse qualquer janela ou luz. Mas sobre a cabeça brilhava uma certa claridade. O objeto não se movia, mas eu tinha a impressão de que a qualquer momento poderia descer do trono e rastejar em minha direção qual um verme.

Fiquei paralisado de angústia. Nesse momento insuportável ouvi repentinamente a voz de minha mãe, como que vinda do interior e do alto, gritando: “Sim, olhe-o bem, isto é o devorador de homens!” Senti um medo infernal e despertei transpirando de angústia”.

Em sua autobiografia, em que conta o sonho anterior, Jung também o analisa. Aos 81 anos, Jung ele interpreta o primeiro sonho do qual se lembrava. Note que a análise deste sonho em especial levou anos para ser realizada. E mesmo ficando anos sem conseguir captar todo o sentido do sonho, Jung reconhecia o impacto em sua vida como um todo.

Segue abaixo a análise pelo próprio sonhador:

“Nunca cheguei a saber se minha pretendera dizer: Isto é o devorador de homens ou Isto é o devorador de homens. No primeiro caso, teria querida significar que não era Jesus…o devorador de crianças, mas sim o falo; no segundo que o devorador de homens é representado de um modo geral pelo falo; portanto, o sombrio Senhor Jesus e o falo eram idênticos”.

Para entedermos o começo desta análise, temos que saber uma informação a mais. O pai de Jung era pastor e, com isso, Jung ainda bem criança via funerais de diversas pessoas. A mãe de Jung havia dito para ele que, depois da morte, Jesus leva às almas para junto Dele.

Desta forma, Jung havia associado a figura de Jesus com a morte.

No autobiografia, já ao final da vida, ele continua a análise de seu primeiro sonho:

“A significação abstrata do falo é mostrada pelo fato de este ter sido entronizado por si mesmo itifalicamente. O falo desse sonho parece ser um Deus subterrâneo, ‘que não deve ser nomeado’.

O Senhor Jesus jamais se tornou muito real para mim, jamais muito aceitável, porque repetidas vezes eu pensava em sua parte subterrânea, algo não-humano e do mundo inferior, que olhava fixamente para cima e se alimentava de carne humana.

Esse sonho era uma iniciação no mundo das trevas. Minha vida intelectual teve seu começo inconsciente nessa época”.

 

Análise do Sonho de Infancia de Jung, por Von Franz

Abaixo uma pequena interpretação da maior colaboradora de Jung, Marie Louise Von Franz:

“Pode-se escrever um livro acerca desse misterioso símbolo onírico, tão pleno de sentidos.

Em primeiro lugar, o próprio Jung viu nele um nascimento, o de sua vida intelectual. De fato, segundo a antiga concepção romana, o falo simboliza o “gênio” secreto do homem, a fonte de seu poder criador físico e mental, o gerador de todas as suas idéias brilhantes ou inspiradas e de sua espantosa alegria de viver”.

Deste modo, podemos ver que o Sonho inicial de Jung é um sonho arquetípico. Ele constela uma imagem que uma criança de 3 anos não tinha tido contato.

Temos basicamente, as seguintes imagens:

– Descida aos mundos inferiores

– O trono (como de um rei de contos de fada)

– o Falo

– Jesus

Os mundos inferiores aqui não tem o sentido de inferno. Embora a palavra inferno, literalmente signifique dentro da esfera: in-fera.
Este é o mundo que está para além deste mundo, o mundo dos mortos, o mundo que abrange o passado e o futuro, habitado pelo espírito das profundezas.

O Falo indica a criatividade, a possibilidade de se criar algo novo – nas palavras de Von Franz: o gênio que anima a pessoa.

O fato de a mãe de Jung fazer referência ao devorador de homens mostra o lado sombrio (o lado esquecido) do Cristo. E de maneira mais geral, do Cristianismo.

Uma das tarefas de Jung foi, justamente, a de trazer o que havia ficado escondido durante séculos, o lado obscuro da Idade Média: os símbolos alquímicos.

Com isto, vemos que este primeiro sonho é de vital importância. Embora fosse muito difícil para qualquer prever o que aconteceria na vida de Jung, olhando retrospectivamente, podemos ver que o sonho prevê ou indica o seu caminho.

E é nesse sentido que podemos compreender dentro da Psicologia Analítica, a importância dos primeiros sonhos de infância: “Os sonhos iniciais projetam o futuro da vida do indivíduo”.