Olá amigos!
Existe uma música da banda The Verve que eu gosto muito. A música se chama On your own, que podemos traduzir como você por você mesmo. Hoje gostaria de falar sobre esta música. Este é um texto de reflexão livre mais do que um texto teórico de psicologia, ok? Embora, de certo modo, eu também me baseie nos conhecimentos da área na qual sou formado, especialmente na psicanálise lacaniana.
Você por você mesmo
A música começa dizendo as seguintes frases (tudo que vou dizer a seguir é uma tradução minha da música originalmente em inglês)
Me diga o que você viu
Foi um sonho?
Eu estava nele?
Nunca é demais dizer e repetir que um relacionamento é, literalmente, re-laçar, ou seja, uma união entre duas pessoas, apesar de que muitas vezes parecer mais um nó do que um laço… todo relacionamento começa – assim como todo o diálogo – com a alternância de dar e receber.
Se alguém está ali, está para falar e ouvir, ver e ser visto, tocar e ser tocado. Por isso acho tão bonito, e talvez até um pouco triste o começo da música do Verve, porque ele começa se colocando na posição de ouvir…ouvir o que a outra pessoa tem para dizer sobre o que ela viu, sobre o que sonhou. Entretanto, a abertura ao outro não é total. Muito difícil quem consegue exercer sempre a arte de se despojar de si para oferecer um presença total. Normalmente, o que vemos é o interesse também residir no que o outro pensa ou acha sobre qualquer coisa, tendo em vista muito mais o que pensa sobre si. Como uma outra música do Nirvana que diz: “Não importo com o que você pensa, a não ser que seja sobre mim”.
Em outras palavras, na música do Verve a pessoa está interessada em ouvir, mas o foco da sua atenção também está ligado com o intuito de saber se o “eu próprio” entra na conversa. Você sonhou? Ótimo! Eu estava no sonho?
Um outro aspecto é o que quase ninguém sabe. A importância dos sonhos no desenvolvimento dos conteúdos psíquicos. Assim como um relacionamento poderia quase que ser previsto tendo em vista sonhos anteriores e fortes, o fim de uma relação não raro é sonhado dias, semanas ou até meses antes de acontecer na realidade (compartilhada).
A música continua:
A vida parece tão obscena
Até que acabe, quem sabe?
Entre a vida e a morte
quando nada mais resta
Você quer saber?
Lacan dizia que o superego (überich – supereu) é obsceno. A obscenidade da vida é o tempo limite. O tempo de Cronos. O tempo cronológico, nacheinander, um-depois-do-outro. O tempo que acaba, o fim da vida, a morte. Há algo mais obsceno que a morte?
E entre a vida e a morte, quem sabe de verdade o que pode acontecer? Não sei porque gravei em minha memória uma querida professora do mestrado dizendo a respeito da imprevisibilidade da vida. Quando falamos no passado, vamos coletando os fatos e tentando encontrar conexões lógicas, que produzam sentido.
Em biografias isso é muito frequente. Seria como se eu fosse dizer da minha ligação com a psicologia e dissesse que desde cedo gostava de ler artigos em revistas, livros da área, filmes. Eu explico um tempo futuro por um tempo passado. Entretanto, porém, contudo, todavia… isso é uma abstração. Como saber aonde vamos estar morando daqui a 10, 20 anos? Como saber de antemão as pessoas que vamos conhecer? Com quem diz, “às pessoas que ainda não conheci… um abraço”.
A música continua e o Richard Ashcroft nos fala se queremos saber:
Você veio (nasceu) sozinho (por você mesmo)
E você vai (partir) sozinho (por você mesmo)
Esqueça os seus amores (que estão na deles, por eles mesmos)
E os seus amigos (que estão na deles, por eles mesmos)
Esse é o refrão e por isso o título da música. On your own. Por você mesmo. Você quer saber que, em última instância, é só você com você mesmo? Você quer saber que a única pessoa que vai te acompanhar a vida toda é você?
Como um outro professor da faculdade dizia: “não dá para tirar férias de si mesmo”… dá para tirar férias do trabalho, da escola, das pessoas… mas de si mesmo, não dá!
E o que você vai fazer com isso? Vai se cuidar ou vai se maltratar? Conhece a história do Lucullus?
A história de Lucullus
Conta a história que Lucullus – um general romano que realmente existiu – era um sujeito riquíssimo. Em virtude de sua riqueza, dava muitas festas, banquetes e jantares em seu palácio.
Certa noite, chegando de um passeio, viu que a sala onde costumava realizar suas festividades não estava preparada e belamente enfeitada. Apenas havia na mesa um prato.
Imediatamente, ele chamou seus serviçais e perguntou porque não haviam preparado a mesa como de costume. Os serviçais responderam que não a haviam preparado pois não haveria festa. Lucullus iria jantar sozinho naquela noite.
O general romano então responde: – “Mas você não sabe que Lucullus vem jantar com Lucullus?”
Moral da história: Lucullus aprendeu que ele sempre estará com ele mesmo (e cada um de nós conosco mesmo). Por isso, também se lembre de esquecer o seu amor ou os seus amigos um pouco.
A solidão não precisa ser temida. Porém, o pensamento logo retorna, na música:
Me diga se é verdade
que eu preciso de você
Você está mudando
Querer estar próximo é muito diferente de precisar estar – o que não é apenas um jogo de palavras. Se uma pessoa tem vontade de estar junto de outra, ela pode estar. Mas precisar estar, como uma necessidade ou um apego, é reconhecer uma falta, um vazio a ser preenchido por outra pessoa. Daí a urgência.
Mas o pensamento ainda continua… “será que eu preciso de você? Você está mudando”…
E voltamos ao tempo com suas obscenidades. Nada permanece parado. Tudo muda e se move. Ora, então porque deveríamos esperar que as pessoas – como nós – não mudassem?
Eu já vi esta estrada
E está me machucando
Como disse no texto anterior, é mais provável um relacionamento terminar do que continuar no longo prazo. E, no final, terminará mais ou cedo ou mais tarde… mas para que permaneça o máximo de tempo é preciso se adaptar às mudanças. As mudanças que acontecem internamente e as mudanças que transcorrem no outro.
E a última parte da música diz:
Tudo o que quero é alguém
para preencher o buraco nesta vida que conheço
Entre a vida e a morte
quando nada mais resta
Você quer saber?
Você veio (nasceu) sozinho (por você mesmo)
E você vai (partir) sozinho (por você mesmo)
Esqueça os seus amores (que estão na deles, por eles mesmos)
E os seus amigos (que estão na deles, por eles mesmos)
Lacan dizia que o ser humano é o falta-a-ser. A falta quer dizer a incompletude. Todo sujeito é um sujeito desejante e, com seu desejo, por lógica, contém uma falta. A falta, este vazio, esta incompletude, este buraco na vida que se conhece.
Se Ashcroft canta para alguém, ou para si mesmo, há diferença. Ele reconhece – como todos deveríamos – que estamos em última instância sempre sozinhos. Nessa solidão existencial há a percepção da falta, do vazio, da esperança, do desejo de encontrar alguém para completar e preencher a lacuna. Porém, é curioso o fato de que ele começa falando para a pessoa e logo em seguida diz que tudo o que ele queria era alguém (portanto, uma outra pessoa).
É como aquele tipo de gente que está em um relacionamento sempre de olho em outro. Ou, apesar da presença alheia (estou ainda no teu sonho?), há a continuidade do vazio e a sensação de falta, que seria constituinte do ser humano.
São questões a se pensar. Para concluir, um trecho de um dos poemas mais incríveis já escritos em língua portuguesa: A Passagem das Horas, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).
Obter tudo por suficiência divina
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As cousas belas da vida
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Olá Felipe!
Somos sós e estamos juntos às vezes, amamos os encontros e sofremos com os desencontros – é essa a dor e a beleza da vida.
Encontrei-me na música, no texto e na poesia,
Gratidão,
Malu
Olá Malu!
Fico muito feliz que tenha gostado do texto!
Aprecio muito tanto o The Verve (seus 4 álbuns) como Fernando Pessoa.
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Felipe, achei muito interessante a organização das ideias. O ser é único, complexo mas não se basta!
[…] “Todo sujeito é um sujeito desejante e, com seu desejo, por lógica, contém uma falta. A falta, este vazio, esta incompletude, este buraco na vida que se conhece.”
Olá Felipe!
Muito bom o texto.
Sempre quando posso acompanho e leio seus textos.
Não sei se você já fez algum texto falando sobre o assunto, mas tenho interesse em saber qual sua abordagem, em qual semestre do curso você decidiu e como surgiu o interesse?
Estou muito confusa, cada abordagem me chama atenção …
Aguardo retorno.
Obrigada!
Obrigado Raquel! Também gostei quando reli, rsrs.
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Olá Livia!
Eu já entrei na faculdade gostando muito da Psicologia Analítica do Jung. Mas dai percebi a necessidade de estudar também a fundo a psicanálise (Freud e Lacan). Mas sempre achei a visão do Jung mais completa e por isso continuo estudando sua complexa obra, agora já no final do doutorado, sem, entretanto deixar de estudar outros autores.
Uma ideia legal é pegar para estudar um por ano. Para, pelo menos, para ter uma base da psicologia em geral.
Falo mais aqui – https://psicologiamsn20220322.mystagingwebsite.com/2013/09/dilema-estudantes-psicologia-abordagem-seguir.html
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Poxa, um dos textos mais tocante que li aqui.
Lindo, Felipe!
Felipe,
Obrigada!
Adoro seus textos Felipe. A complexidade do Ser Humano,numa busca constante da felicidade plena, ser absolutamente feliz independente do todo …do tudo e todos que nós cercam. Acredito ser esta nossa busca, viemos , estamos e voltamos completamente sozinhos. Mas todos temos uma necessidade absurda do outro, uma carência que temos que vencer para podermos perceber que apenas nós e ninguém mais, pode preencher esta lacuna
Lindas palavras. O bom é encontrar se em si, completar se, sentir totalmente inteiro estando consigo próprio. Talvez para muitas pessoas encontrar a própria sombra não seja agradável, mas esse encontro é iminente e ao fim satisfatório. gratidão pelo texto!
Muito bom o texto Felipe, sem dúvida és o melhor, e sem falar da música a qual eu nem conhecia ela é fantástica, veio uma regressão de memória daquelas.
Felipe, amo seus textos! Esse site me deixa mais perto dessa paixão que é a psicologia <3
Obrigado Letícia!
É sempre um prazer contar com sua participação por aqui!
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Um contraponto muito interessante à idéia psicanalítica do desejo como falta é a filosofia de G. Deleuze e Félix Guatarri, que escreveram, juntos, a obra “O anti-édipo”. Acho difícil entender o desejo como simples livre criação, um vir-a-ser, sem implicar a noção de falta. Mas é essa a tese desses autores. O inconsciente não como o teatro de édipo, já dado, mas como máquina pós-moderna de produção de devires, livres, desejantes. Enfim, um universo rico a ser explorado, com vocabulário próprio e inovador (“máquinas-desejantes”, “corpo-sem-órgãos”, “desterritorialização”, “rizoma”, “ritornelo”). Enfim, creio que vale o estudo e a discussão, acerca dessas questões. Lembrei também, agora, da expressão “Solidão a dois” (que descreve bem, muitos relacionamentos, né?)….rs….Creio que o outro é sempre um ilusão de superação da solidão essencial, como se fosse um entretenimento que nos distrai.
“Somos sós e estamos juntos às vezes, amamos os encontros e sofremos com os desencontros – é essa a dor e a beleza da vida.” (Malu Poças) Linda frase Malu! Emblemática! Guardei! Parabéns!
Poxa, Felipe, esse texto é tão profundo como a própria natureza humana. Acho que conseguiríamos entendê-lo melhor caso pudéssemos nos transportar para além do ser, sair dessa condição limitante humana, em que nossa consciência apenas vagueia em torno de uma unidade (o ser) que parece não existir como tal. Também aprecio muito os seus textos e acho que você tem um talento especial e raro: falar de forma simples e objetiva sobre algo tão complexo e subjetivo como a natureza humana. Gosto também muito da ideia de incluir a arte (que é um conhecimento puramente intuitivo) nessas discussões. Continue nos brindando com seus ótimos textos.
Olá João Bosco!
Obrigado meu caro!
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Por que a morte é obscena? Em que sentido?
Olá Maria!
Talvez obscena não seja a melhor palavra. Digamos que foi uma licença poética.
Queria dizer que a morte é este limite, este mistério, isto sobre o qual não sabemos e que ocorrerá inevitavelmente encerrando o que quer que tenhamos feito por aqui.
Atenciosamente,
Felipe de Souza
Thank you.
O texto me fez lembrar da música do Pearl Jam, I Am Mine: “I know I was born and I know that I’ll die / The in between is mine/ I am mine”.
Boa tarde Felipe,
muito legal seus textos.
Eu era uma pessoa que mais amava o amor do que as pessoas em si e isso me trazia muito sofrimento, pois eu não tinha autoestima e sempre precisava de alguém ao meu lado.
Hoje depois de 4 anos de terapia me reconstrui e aprendi a me amar antes de amar qualquer um e aprendi também que ficar só é muito diferente de estar só.