Quando eu comecei a estudar alemão na faculdade e a ler Freud em sua língua materna, achei muito interessante a ligação existente entre Culpa (Schuldig) e Dívida (Schuldig). Foi interessante observar também o pedido de desculpas (Entschuldigung), que também é utilizado como cumprimento, geralmente antes do “Como vai você”. Neste texto vamos falar sobre culpa e como a culpa pode ser expiada, ou seja, como podemos nos livrar, superar o sentimento de culpa – presente em em tantas e tantas vidas.

O que é culpa?

De acordo com o dicionário Michaelis, culpa vem do latim e apresenta os seguintes significados:

sf (lat culpa1 Ato repreensível ou criminoso. 2 Responsabilidade por um ato ou omissão repreensíveis ou criminosos: “Culpa é toda violação de um dever jurídico” (C. Beviláqua). 3 Consequência de se ter feito o que não se devia fazer. 4 Delito, crime. 5 Causa de um mal. 6 Pecado.

Com estas definições do dicionário, vemos que a culpa está mais relacionada com cometer um ato imoral ou ilegal. De certa forma, o dicionário nos traz a ideia de que temos culpa a partir de atos errados, mal intencionados ou juridicamente problemáticos. É a ideia de que alguém, quando comete um assassinado, torna-se culpado (pelo assassinato).

No consultório de psicologia, vemos o sentimento de culpa de uma forma um pouco diferente. É como se o paciente se sentisse culpado de algo vago, indefinido, imperceptível ou esquecido do passado. Neste caso, a culpa é muito mais um sentimento de inadequação, de equívoco, de lapso que foi um erro e que continua atormentando a vida da pessoa.

Em muitos casos, o indivíduo que vem buscar ajuda do profissional da psicologia, pensa saber da causa de sua culpa. Por exemplo, pode imaginar que, quando criança, fez algo grave contra o irmão. Ora, esta imagem pode ser apenas uma imaginação, uma fantasia. Se questionar os parentes, se for a fundo na realidade da história, não frequentemente descobriremos que a culpa é por algo inexistente, por um pensamento, por uma fantasia.

Ou seja, é até certo ponto indiferente, o fato de o evento gerador da culpa ter acontecido no passado longínquo ou não. O importante é que a culpa existe e devemos possibilitar todo o processo de esvaimento desta culpa.

Como disse no começo do texto, culpa tem uma relação com dívida. Interessante notar, por exemplo, que culpa possui relação com pecado (o dicionário também mostra esta significação). Na oração “O Pai Nosso”, temos a frase: “Perdoai as nossas ofensas”, cuja tradução correta seria “Perdoai as nossas dívidas”. Dívidas não significa estar devendo dinheiro a outrem, mas sim, relaciona-se intimamente com a culpa. Em latim, este trecho é claro: “Et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostri”. A palavra debita vem de debito, quer dizer, dívida, no sentido de pecado, culpa.

Toda esta relação entre dívida e culpa pode parecer estranha. Mas para muitas e muitas pessoas a relação é instantânea. A relação que a pessoa tem com o dinheiro, o medo de não conseguir pagar as contas, de ficar devendo, de ter que guardar (com avareza) para não correr este risco, ou todos os pensamentos recorrentes das contas que vão vencer são exemplos de sintomas clássicos da neurose obsessiva. E mesmo para pessoas que não poderiam ser classificadas dentro deste quadro psicopatológico, a culpa pode aparecer como um sintoma.

Desculpa e Alívio

Existem formas interessantes de lidar e superar a culpa. Eu vou mencionar agora algumas e poderemos analisar de uma forma mais distanciada, pois os exemplos que selecionei são ou de outras culturas ou exemplos das religiões.

Acima citei a oração “Pai Nosso” e dentro do próprio cristianismo podemos encontrar duas formas de lidar com a culpa. A primeira (e muitas vezes ignorada por quem não conhecesse a teologia da própria religião) vem da ideia de que Cristo expia as culpas de todos. Ou seja, o fiel encontra em Cristo a solução de seus pecados. Outra forma que os cristãos encontraram foi através da confissão.

Ao confessarem seus pecados, a culpa é liberada, no próprio ato da fala ou através de práticas como orações, jejuns ou outros.

Na África, um tribo, tem um costume belíssimo:

Quando alguém faz algo prejudicial e errado, eles levam a pessoa para o centro da aldeia, e toda a tribo vem e o rodeia. Durante dois dias, eles vão dizer ao homem todas as coisas boas… que ele já fez. A tribo acredita que cada ser humano vem ao mundo como um ser bom, cada um de nós desejando segurança, amor, paz, felicidade. Mas às vezes, na busca dessas coisas, as pessoas cometem erros. A comunidade enxerga aqueles erros como um grito de socorro. Eles se unem então para erguê-lo, para reconectá-lo com sua verdadeira natureza, para lembrá-lo quem ele realmente é, até que ele se lembre totalmente da verdade da qual ele tinha se desconectado temporariamente:”Eu sou bom”.

Sawabona Shikoba!

SAWABONA, é um cumprimento usado na África do Sul e quer dizer: “EU TE RESPEITO, EU TE VALORIZO, VOCÊ É IMPORTANTE PRA MIM”. Em resposta as pessoas dizem SHIKOBA,que é:  “ENTÃO, EU EXISTO PRA VOCÊ”.

Conclusão

A culpa, no modo como encontramos no consultório de psicologia, é um sentimento muitas vezes vago de que um ato ou pensamento aconteceu no passado e que não deveria ter acontecido. Outra forma, com o mesmo processo, é o sentimento de que algo não foi feito. Como uma pressão e uma cobrança do fato de algo ter ficado sem conclusão, sem término ou até nem ter sido iniciado, quando o correto seria ter feito.

Para nos livrar da culpa, existem muitas práticas sociais e religiosas. No texto, mostramos concepções do cristianismo e de um tribo africana. Outra maneira, digamos, mais moderna, é a terapia com um profissional da psicologia ou da psicanálise. Não digo, evidentemente, que seja uma forma melhor. É apenas uma outra forma de superarmos este sentimento sempre tão incômodo.

Se olharmos para a confissão, tal qual acontece no cristianismo, veremos que há semelhanças na forma com a psicoterapia trabalha a culpa. Claro que são práticas muito diferentes, dadas as origens, uma na religião e outra na ciência da psicologia. Porém, o efeito que o senso comum chama de desabafar é idêntico.

Nas outras duas formas citadas no texto, o processo de expiação da culpa vem de fora. Em uma, vem do Cristo e na outra vem da coletividade, da sociedade que procura recobrar a consciência do culpa, não o culpando (como geralmente fazemos, trancafiando alguém em uma cela ou condenando-o), mas sim mostrando que a pessoa – ainda que tenha cometido um erro – possui em si a sua bondade original.