O Antropocentrismo rompe com a dominação do Teocentrismo na sociedade, o que leva o homem à produzir, viver, pensar, conceber as artes de modo diferente e inaugura uma nova fase na história.

O termo “Renascimento” foi tomado como categoria historiográfica a partir da visão de Jacob Burckhardt, nos Oitocentos. Ao publicar a obra A cultura da Renascença na Itália, em 1860, o historiador expôs a Renascença como um movimento originado e inerente à Itália. Como características, pode-se notar a exaltação a vida no mundo, o individualismo teórico e prático, o embate contra a religião com a mundanização da vida, há oposição à dominação espiritual através dos pensamentos religiosos da Igreja, a é vista arte com grande papel social, há o nascimento um forte sentido histórico com a escola historiográfica do Antiquário, e há uma retomada e renovação do naturalismo filosófico.

Assim, Burckhardt explica a Renascença como o nascer de uma nova cultura, oposta à cultura medieval, e como um novo olhar sobre as produções da Antiguidade: “com efeito, é a síntese do novo espírito que se criou na Itália com a própria antiguidade, é o espírito que, rompendo definitivamente com o espírito da época medieval, inaugurou a época moderna” (REALE, 2009, p. 10).

Todavia, devemos ter em mente que a tese de Burckhardt foi refutada por diversos autores, alguns destes não concordavam com a noção de Renascença somente como o novo, como rompimento com a Idade Média, dado que alguns dos pensamentos mais discutidos na Renascença já estavam presentes na Idade Média. A tese de Burckhardt também não deve ser descartada por completo e, pois, nos serve para apontar – mesmo que de maneira mais radical – algumas rupturas ocorridas entre Idade Média e Renascença. Como não é nosso objetivo entrar no debate historiográfico acerca do problema do tempo histórico, adotaremos a visão da Renascença representar tanto rupturas quanto continuidades com a Idade Média. Portanto, devemos abordar a Renascença no que ela contém tanto de continuidade com o pensamento anterior quanto de rupturas com o mesmo, posto que:

Entre a contrariedade e a homogeneidade, existe a “diversidade. Ora, dizer que a Renascença é uma época ‘diversa’ da Idade Média não apenas nos permite distinguir as duas épocas sem contrapô-las, mas também identificar facilmente seus nexos e suas tangências, bem como suas diferenças, com grande liberdade crítica (REALE, 2009, p. 12)

A Renascença é também concebida, pois, como grande fenômeno espiritual de regeneração através do retorno aos antigos, embora este retorno tenha feito com que os renascentistas a se recriassem, criando o novo.

Restringindo nosso objeto de estudos, abordaremos um importante rompimento de modo mais detalhado: o rompimento com a tese teocêntrica medieval e o surgimento da visão antropocêntrica no renascimento. Temos por objetivo expor sinteticamente quais são as características de ambas e suas oposições.

O que é Teocentrismo?

O Teocentrismo – do gregoθεóς e κέντρον – é uma doutrina que toma Deus como o fundamento de toda a ordem existente no mundo a qual vigorou na Idade Média. Seus princípios são o respeito, a moderação, a humildade, a abnegação e a atenção. Tal doutrina pode ser entendida como característica da Idade Média, pois nesta época histórica, todos os questionamentos circundava a ideia de Deus, em razão da dominância do pensamento teológico cristão. Agostinho é o principal responsável por este modo de pensar, porque discorre sobre a salvação espiritual e sobre a condição do homem no mundo, concluindo que há a dupla origem do homem – origem divina e origem do pecado original.

Em suas exposições, aponta para a corrupção do homem através do pecado original e é por isso que o homem passou a ser visto como criatura inferior, imperfeita, criada por Deus e necessitada de buscar a salvação. Sabe-se que, na Idade Média, não haviam instituições voltadas ao conhecimento, e assim ocorreu de a Igreja assumir o controle do conhecimento sem maiores empecilhos. A busca da salvação espiritual passou a ser predominante no pensamento e comportamento medieval, além da perspectiva de Deus como estando acima de tudo, inclusive do homem. A Natureza é concebida como criação e obra divina e, assim, estudam-se novas provas da bondade e da existência do criador do mundo. As relações entre o homem e a natureza tem Deus como mediador: “A posição de Deus, como centro do universo e controlador da natureza (clima, mares e terras), é a ideia chave para entender a posição do homem na natureza” (HENRIQUE, 2009, p. 47). A Natureza do homem, mesmo que seja criação divina, é a de submissão com relação a Deus.

A compreensão do conceito de Natureza proposto na Idade Média liga-se intimamente à visão teocêntrica do mundo, ademais ambas as visões são concomitantes. Assim, a ideia de uma criação divina da natureza, de uma natureza que não tem existência por si própria pode ser dita religiosa. A Teologia terá a função de mediar a relação entre homem e natureza, sendo a Bíblia a fonte das respostas a todos os questionamentos sobre a mesma: “A natureza configura-se como uma natureza fisico-teológica, vista como uma prova física importantíssima para demonstrar a existência de um Criador. A natureza, ou a criação, possui um desígnio, definido no processo de elaboração desta prova” (HENRIQUE, 2009, p. 46).

Conforme foi exposto na citação acima, a natureza é caracterizada como física por existir concretamente e teológica por possuir uma relação de dependência com o divino, por depender deste para existir. Assim, Deus cria a natureza e ela é a prova de sua existência.

Desta maneira, podemos depreender do exposto que o Teocentrismo embasou a visão de mundo em torno de Deus, a visão do homem como um pecador cuja necessidade é a salvação, a visão da natureza como intrinsecamente ligada ao divino e dependente dele.

O que é antropocentrismo?

O Antropocentrismo – do gregoάνθρωπος e κέντρον – é um sistema ideológico que a compreende o homem como o centro das investigações humanas, e o universo deve ser concebido segundo sua relação com o mesmo. Nota-se que ocorre a retomada da afirmação de Protágoras, de que o homem é a medida de tudo. O homem, enquanto figura central, marca o mundo social, o mundo filosófico, artístico, científico, marca todos os aspectos que o envolvem. Temas como a problematização dos sentimentos humanos, das formas das instituições humanas são notórios neste período.

O comportamento do homem como místico e religioso medieval é negado até certo ponto, de modo que as atenções se voltem para as coisas terrenas, para o próprio homem, já que passa a ser visto como filho de Deus, criado à imagem e semelhança deste. Contudo, há ainda uma forte concepção mística, esotérica, que contempla os mistérios – haja vista que esta concepção se faz mais presente no período humanista do Renascentismo, isto é, ao fim deste período. A razão passa a ser entendida como um aspecto divino no homem, tendo a capacidade de entender as coisas criadas por Deus. A curiosidade intelectual foi a marca da Renascença, e, por isso o questionamento acerca do homem em sua exterioridade se tornou tão importante. O homem passa a ser um elemento distinto na criação divina, passa a ser investigado em seus diferentes aspectos. Podemos ver, pois, o antropocentrismo como uma nova visão de mundo. E nesse mundo, Deus não é central nas indagações.

O antropocentrismo foi uma marca irrefutável da Renascença. Entre os séculos XV e XVI, novos paradigmas passam a reger o homem, como o pensamento sobre a natureza; o pensamento do homem enquanto indivíduo – cuja finalidade é alcançar a autorrealização. Alguns autores afirmam que todo o contexto histórico foi responsável pela reflexão antropocêntrica, e como um dos elementos deste contexto, podemos destacar a passagem do feudalismo ao capitalismo mercantil, no século XV.

Com a ascensão burguesa – classe que queria mostrar sua nova condição social – e com o desejo dos nobres de também expressarem suas riquezas, houve um intenso financiamento às artes neste período. Dentre estas, predominavam as pinturas que retratavam o homem em sua individualidade e em seus aspectos psicológicos característicos. O divino ainda era retratado, mas de forma diferente.

O homem se tornou mais independente com relação ao contato, interpretação e produção do conhecimento – retomavam-se os clássicos antigos originais, sem interpretações prévias ou traduções – e isso ficou mais forte com a criação da imprensa, por Gutenberg, por volta de 1439. Foi esta invenção que deu o impulso para a democratização do conhecimento e disseminação rápida de novas ideias e que contribuiu de modo fundamental para o desenvolvimento da Renascença, da Reforma, da Revolução Científica e também para o surgimento da Modernidade.

A intensificação das grandes navegações também pode ter contribuído para a nova visão que o homem passa a ter de si e do mundo. Ao entender as regularidades que regem a natureza, os homens podem expandir os horizontes, aumentar o comércio, entrar em contato com outras culturas, isto é, o homem passa a se ver como capaz de autorrealização, de inovar. A nova visão de si consiste no fato de que o homem descobria em si uma fonte sem fim de inspiração e conhecimento, assim ele e a natureza tornam-se o centro das questões.

Devemos ressaltar que o universo passa a ser concebido de modo racional e empírico, sem a dominação religiosa e dogmatizada vinda da Igreja. A verdade passa a ligar-se à razão, já que ela tem a capacidade de explicar a realidade, diferentemente do pensamento medieval, para o qual a verdade liga-se às crenças e à religião.

O Antropocentrismo rompe com a dominação do Teocentrismo na sociedade, o que leva o homem à produzir, viver, pensar, conceber as artes de modo diferente. O homem passa, pois, a ser independente da vontade de Deus, não sendo mais uma extensão da vontade divina. A vida do homem não pode mais ser entendida como uma caminhada para Deus – a qual era guiada pela Igreja. Desta maneira, ficam evidenciados os pontos centrais que caracterizam Antropocentrismo e Teocentrismo, bem como suas diferenças radicais.

Michelle Vaz é graduanda em Filosofia