Na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant divide os três capítulos de acordo com o método utilizado. A divisão é de extrema importância para que se possa compreender a argumentação kantiana. A Primeira Seção – Transição do conhecimento racional comum para o conhecimento filosófico – tem como objeto o conhecimento moral comum, isto é, o conceito de dever. A Segunda Seção -Transição da filosofia moral popular à metafísica dos costumes- retraça o conceito de dever em seu fundamento a priori. Apesar das duas seções abarcarem o mesmo conceito, há uma diferença entre ambas devido ao percurso argumentativo. Assim, propomo-nos a expor brevemente o percurso argumentativo kantiano nas duas seções citadas acima para evidenciar os diferentes pontos de partida utilizados bem como os diferentes objetos visados pelo autor.

No Prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant lança algumas indicações que se referem aos procedimentos de análise utilizados na obra. A primeira indicação diz do ponto de partida de sua investigação, que é o conhecimento moral comum – identificado ao conceito de dever. A segunda indicação diz do objetivo geral da obra, que é buscar e estabelecer o princípio supremo da moralidade. A terceira indicação diz do método seguido pelo autor: ascender analiticamente do conhecimento moral comum ao seu princípio, para depois voltar sinteticamente do princípio supremo da moralidade ao conhecimento comum. A quarta indicação é a divisão da obra – obtida através da aplicação desse método.

O conhecimento racional comum é tomado como o ponto de partida da filosofia moral. Este conhecimento racional comum pode ser identificado ao “conceito dado” – isto é, uma compreensão pré-filosófica – de moralidade. Todavia, é problemático falar sobre esse “conceito dado” de moralidade devido à variação, segundo os grupos sociais, de noções sobre o que é lícito, sobre o que é proibido ou obrigatório. Destarte, se o ponto de partida da investigação kantiana é o “conhecimento racional comum”, este conhecimento indica o que há de comum entre as diversas concepções e entre os vários códigos morais existentes. Presume-se, pois, que deva haver algo em comum entre esses diferentes códigos morais para que todas as concepções possam ser tomadas como concepções morais. Por isso Kant visa determinar qual é o significado básico do predicado “moral”. No Prefácio, “conhecimento moral comum” e a “ideia comum do dever e das leis morais” são identificados.

A segunda indicação acerca do procedimento realizado por Kant é a caracterização do objetivo da obra como buscar e estabelecer o princípio supremo da moralidade. Este princípio pode ser denominado “supremo” por regular o uso do conceito de moralidade em geral. Assim, o princípio se sobrepõe aos princípios morais particulares. Nota-se que Kant teve como objetivo determinar qual é este princípio analisando o conceito dado de moralidade e, após descobri-lo, visou fundamentá-lo.

Fica evidente que, nesta obra, Kant buscou tanto “explicitar o princípio que subjaz a todos os juízos morais (analisando o significado do conceito dado de moralidade), mas também a de “estabelecer”, isto é, provar a validade, ou a necessidade de se aceitar esse princípio por um argumento adicional (que não dependa da suposição do conceito de moralidade)”1 (ALMEIDA, 2009, p.20). Ao provar a validade dos princípios, consequentemente, prova-se a validade dos juízos morais embasados nele e também são retiradas as razões que levariam à recusa do conceito dado de moralidade. Logo, o argumento hipotético é completado e permite que se afirme, de modo categórico, a possibilidade de se fazer juízos morais.

A terceira indicação que Kant fornece acerca do procedimento realizado é sobre o método seguido na obra: “o método consiste em ascender analiticamente do conhecimento moral comum (que se exprime nos juízos morais particulares) ao seu princípio (portanto ao princípio dos juízos morais comuns), para retornar em seguida sinteticamente desse princípio ao conhecimento moral comum (isto é, aos juízos morais que se pautam por esse princípio)” (ALMEIDA, 2009, p.21).

 Kant utiliza-se de dois métodos: o método analítico – procede de modo regressivo por ir do conhecimento moral comum até a determinação do princípio desse saber – e o método sintético – o qual parte do saber filosófico para aplicar o princípio aos casos particulares. Deve-se ter em mente que o método analítico é utilizado nas duas primeiras seções da obra, enquanto o método sintético é utilizado na última seção.

No caso do método analítico, como aquele que parte do que é procurado como se fosse dado e que ascende de modo que alcança as condições sob as quais o que é procurado se faz possível, supõe-se que a existência dos juízos sintéticos a priori é dada. As condições que possibilitam esses juízos – até as quais se ascende de modo regressivo – são: a forma espaço-temporal das intuições sensíveis e a forma categorial dos conceitos dos objetos em geral.

O método sintético é de suma importância para o método analítico, já que para que este seja considerado um método que prova a possibilidade do juízo sintético a priori – o que se busca – faz-se necessário que as condições já tenham sido estabelecidas. Estas condições só são estabelecidas através do método sintético – ou progressivo.

Fica mais clara a aplicação de ambos os métodos na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pois nela supõe-se como dado a possibilidade de se fazer juízos morais de acordo com o conhecimento moral comum. Ao partir dos juízos morais que são pensados de acordo com a compreensão comum do conceito de moralidade, pode-se ascender (se a análise for correta) ao princípio que embasa esses juízos morais.

Quanto à divisão da obra, Kant afirma que é resultado da aplicação de seu método analítico-sintético. A aplicação do método sintético faz-se necessária para estabelecer o princípio supremo dos juízos comuns e este é o objetivo principal da obra. Todavia, esse objetivo requer um exame crítico e uma prova da validade deste princípio. A aplicação deste método sintético centra-se mais na Terceira Seção da obra, na qual se dá a passagem para a crítica da razão pura prática.

Todavia, antes de aplicar o método sintético para chegar à dedução do princípio fundamental dos juízos morais, Kant desdobra sua exposição do conceito dado de moralidade em duas partes: a primeira parte visa explicar conceitualmente o princípio que está subjacente à aplicação do conceito de moralidade embasando-se na compreensão pré-filosófica deste conceito; a segunda parte é composta pelas respostas às oposições filosóficas possíveis quanto à análise feita. Isto aponta para mais uma diferença entre a Primeira e Segunda Seções.

O título da Segunda Seção Transição da filosofia popular à metafísica moral, diz da filosofia popular como exemplos das objeções que outros filósofos poderiam fazer à análise de Kant acerca do conceito dado de moralidade. Essas oposições associam-se à noção da natureza da vontade humana como dependente de estímulos sensíveis, a qual é contrária ao princípio prático puro kantiano afirmado como subjacente aos juízos morais comuns.

Como ponto de partida dessa retomada são objeções levantadas por contemporâneos de Kant, representantes da chamada “filosofia popular”, e como ela resulta numa exposição que se pode chamar de metafísica, do princípio a priori que subjaz aos juízos morais em geral, é compreensível que Kant tenha caracterizado a segunda parte da Fundamentação como uma transição da “filosofia popular” à “metafísica moral” (ALMEIDA, 2009, p. 25).

Como já foi exposto, o ponto de partida da argumentação kantiana é o conhecimento moral comum – que pode ser identificado à compreensão do conceito dado de moralidade. Todavia, como expõe Almeida, o que constitui efetivamente o ponto de partida da Primeira Seção é o conceito de boa vontade – que designa a vontade moralmente boa, irrestritamente boa.

O que é moralmente bom, por sua vez, precisa ser definido como algo que é bom sem depender de qualquer condição subjetiva particular. Esta definição pode ser atribuída a todo sujeito capaz de julgar o que é bom e capaz de fazer a distinção entre o moralmente bom, útil e agradável. A Primeira Seção abarca a passagem do conhecimento racional comum acerca da moralidade ao conhecimento filosófico. Kant tem como objetivo delimitar o princípio supremo da moralidade através de análise, de modo que fique exposto como esse princípio supremo se apresenta em toda consciência humana.

Destarte, dado que o ponto de partida da Primeira Seção é a suposição de que somente a vontade moralmente boa pode ser considerada irrestritamente boa, Kant visa estabelecer, de modo regressivo, a condição conforme a qual a vontade é moralmente boa, ou seja, o princípio que quando cumprido, assegura a moralidade das ações do homem. Três proposições embasam a derivação desse princípio. Estas proposições são derivadas do conceito do que é moralmente bom e da consideração de que quando a vontade é afetada por inclinações, não se faz suficiente saber que algo é bom para fazer, posto que o que é moralmente bom é considerado como um dever.

A primeira proposição expõe que ter uma boa vontade significa agir por dever, não por inclinação. A segunda proposição afirma que o que confere valor moral à ação é o princípio de agir por dever – agir sem visar as consequências ou os fins- é a intenção. A terceira proposição afirma que o dever é uma ação necessária por respeito à lei moral. Dessas proposições chega-se ao Imperativo Categórico: “agir de tal maneira que eu possa querer que a máxima de minha ação se torne uma lei universal” (KANT, 1962, p. 62).

Assim, ficam expressas as seguintes exigências: a exigência do agir segundo as máximas – princípios subjetivos da vontade de cada homem – que podem se tornar leis universais – princípios objetivos válidos para todos os homens; e a exigência de agir com base nessas máximas por poderem ser tomadas como leis universais. Agir de acordo com a máxima por interesse, visando algum fim, é insuficiente para a ação de valor moral. O final desta Primeira Seção aponta para o fato de que as necessidades e inclinações humanas resistem aos mandamentos do dever quando são opostas a estes. Assim, ocorre a “dialética natural” – tendência de sofismar contra as leis do dever.

O ponto de partida da Segunda Seção – Transição da filosofia moral popular à metafísica dos costumes – é a exposição filosófica do conceito de vontade. Já o objetivo desta seção é expor que o princípio das leis morais são oriundos da razão e também determinar qual é o conteúdo dessas leis.

A análise do conceito de vontade perpassa três passos, os quais serão apresentados de modo geral: 1°) estabelece-se a ligação entre o conceito da vontade ao conceito da razão prática, conforme se entende a vontade como um poder de agir de acordo com os princípios e conforme se entende que é necessário que as ações de princípios derivem da razão; 2°) distinção entre uma vontade perfeitamente racional (faz necessariamente tudo que lhe é apresentado como bom, sem necessidade da coação dos imperativos) e uma vontade imperfeitamente racional (não faz necessariamente o que é bom ou por ignorância ou por fraqueza).

Outras distinções são apontadas no segundo passo: diferença entre leis – dizem o que é bom fazer – e imperativos – diz o que se deve fazer – ; diferença entre princípios objetivos – leis ou imperativos que dizem o que se deve fazer – e princípios subjetivos – as máximas; 3°) suposição do conceito dado de moralidade – após supor esse conceito e admitir a necessidade de diferenciar o que é moralmente bom do útil e do agradável, tem-se o resultado de que a vontade imperfeitamente racional tem de ser tomada como um poder de agir embasado em dois tipos de imperativos, os imperativos hipotéticos e os imperativos categóricos. Kant aponta que todo princípio moral, independentemente de seu conteúdo, é um imperativo categórico cuja validade se dá para toda vontade imperfeitamente racional.

O filósofo propõe-se, ainda, a mostrar a possibilidade de se determinar a priori o conteúdo do imperativo categórico partindo do conceito de um imperativo categórico: a tese é de que é possível derivar a fórmula – a qual expressa o conteúdo – de um imperativo categórico partindo da consideração acerca das condições que devem ser satisfeitas pelas máximas para que estas últimas possam adquirir um valor moral e, pois, serem prescritas por um imperativo categórico.

As máximas podem ser consideradas sob certos aspectos: forma, matéria e determinação completa. A forma diz da universalidade das máximas, já que é devido à sua universalidade que uma máxima se diferencia de intenções particulares e contingentes. É por causa da universalidade, que possui como forma, que a máxima se torna um princípio subjetivo da vontade. Não obstante, ao considerar a universalidade das máximas, é exigido pelo Imperativo Categórico que estas sejam conformes a ele. Não obstante, o imperativo categórico correspondente afirma: “Age apenas segundo a máxima pela qual possas querer ao mesmo tempo que ela se torne universal”.

A matéria da proposição prática consiste no fim que objetivamos a realizar, sendo que a proposição prática é universal, ou seja, um fim ao qual todos os outros fins estejam subordinados. Ao considerar a matéria das máximas, o imperativo categórico exige a compatibilidade dos fins propostos nas máximas com o que é um fim em si mesmo, a pessoa. Assim a segunda fórmula do imperativo categórico é exposta: “Age de maneira a tratar a humanidade, tanto na tua pessoa, quanto na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como um fim, jamais como um meio” (KANT, 1964, p.92).

Forma e matéria são duas características complementares de uma máxima, já a determinação completa de uma máxima se dá através da consideração da forma juntamente com a consideração da matéria da máxima. Todavia, vale ressaltar que essa junção não é alcançada através apenas da união das duas fórmulas anteriores, pois a pessoa enquanto um fim em si mesma traz algo subjacente à noção de um imperativo categórico que, entretanto, não é evidenciado na primeira fórmula do imperativo categórico.

Assim, ao exigir que o homem não trate a si mesmo nem aos outros como um instrumento para atingir os fins, mas como um fim em si mesmo, expõe que as leis universais as quais subordinam nossas máximas, de acordo com a primeira fórmula do imperativo categórico, tem de ser oriunda em nossa vontade para que cada pessoa possa legislar através de suas máximas. Deste ponto a junção entre forma e matéria das máximas tem como resultado a terceira fórmula do imperativo categórico – que contém em si as duas formulações anteriores: “fazer tudo a partir da máxima de sua vontade, como uma vontade que pudesse ao mesmo tempo ter a si mesma como objeto enquanto universalmente legislante” (KANT, 1964, p. 95).

A metafísica do princípio supremo da moralidade avança devido à formulação do imperativo categórico como um “princípio da autonomia” do sujeito moral. Analisar a vontade como capacidade de querer de acordo com os princípios, ou melhor, como razão prática, possibilita a obtenção do conceito dado de moralidade como um imperativo categórico válido para toda vontade imperfeitamente racional, e, pois, para toda vontade humana.

Através da análise da noção de imperativo categórico e da determinação a priori de seu conteúdo – embasando-se na consideração da forma e da matéria das máximas as quais podem ser prescritas por um imperativo categórico – o filósofo determina o que a vontade capaz de querer deve possuir: a capacidade de querer o que é prescrito por um imperativo, isto é, que essa vontade tenha autonomia e que seja capaz de legislar por si mesma. Fica, pois, evidente, que moralidade e autonomia são conceitos que se implicam de modo recíproco de modo que não se pode aplicar um conceito sem o outro.

O conceito de autonomia da vontade – deslindado na Seção – só pode ser introduzido se embasado no conceito de imperativo categórico. Já este último conceito só é estabelecido com a análise da vontade como razão prática e na suposição do conceito de moralidade: “Por isso, a exposição metafísica do princípio da moralidade como um imperativo categórico para uma vontade livre no sentido da autonomia, mesmo que se baseie num argumento formalmente correto, continua a ter um valor hipotético apenas” (ALMEIDA, 2009, p.36).

Esta noção de imperativo categórico não tem a capacidade de estabelecer criticamente o princípio da moralidade e nem de remover a oposição ao conceito dado de moralidade e o princípio deste derivado. Assim, Kant afirma que a exposição da moralidade na Segunda Seção é analítica, e, pois, insuficiente – por isso recorre ao método sintético na Terceira Seção.

Na Segunda Seção, através de análise do conceito de moralidade universalmente aceito, foi apontado que a autonomia da vontade subjaz a este conceito. Faz-se necessário, pois, que o princípio de autonomia seja tomado como um princípio da vontade moral.

Fica claro, pois, que apesar das duas seções da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes perscrutarem o conceito de dever, o ponto de partida, a argumentação desenvolvida bem como o entrelaçamento dos conceitos ocorre de modo diferente em ambas as seções, quando comparadas. Na Primeira Seção, Kant visa deslindar a moral como se apresenta em toda consciência humana. Assim, seu objeto é o conhecimento moral comum, o conceito de dever que é identificado ao conceito dado de moralidade.

Todavia, o ponto de partida é o conceito de boa vontade. O conceito de dever é tomado como objeto por conter em si o conceito de boa vontade. A Segunda Seção retraça o conceito de dever e o conceito de vontade através de uma exposição filosófica, todavia, em seu fundamento a priori, o que o liga às formulações do imperativo categórico, à razão prática. O objetivo desta dessa seção é mostrar que os princípios das leis morais são oriundos da razão, e também é um objetivo determinar qual é o conteúdo dessas leis.

Portanto, nota-se que, apesar das duas seções abordarem os mesmos conceitos através do método analítico, uma seção parte do conhecimento moral comum, do conceito dado, enquanto a outra parte de uma exposição filosófica, visando entrelaçar esses conceitos ao seu fundamento a priori. Eis aqui, o ponto no qual reside a diferença entre as duas seções.

Referências bibliográficas:

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1964.

Introdução de G. A. Almeida In: KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.

1Guido Antônia de Almeida foi responsável pela nova tradução com introdução e notas da edição de Fundamentação da Metafísica dos Costumes publicada em São Paulo pelas editoras Discurso Editorial e Barcarolla, 2009.

Michelle Vaz é graduanda em Filosofia