Este texto é continuação de Freud e Jung – O rompimento da relação teórica

5) Psicologia e Religião

A forma como os fenômenos religiosos eram considerados também era diferente para um e para outro teórico. Como escreve Phillipe Julien, no livro A Psicanálise e o Religioso: Freud, Jung, Lacan: “Se Jung se separou de Freud a partir de 1913, não foi somente devido ao lugar que Freud concede à sexualidade. Sua oposição concerne, sobretudo, à função religiosa no psiquismo, função que Jung considera positiva se soubermos definir melhor o religioso” (JULIEN, 2010, p. 25).

Após o rompimento entre os dois teóricos, para Freud, Jung seria um profeta fundador de uma nova religião. Mas o curioso é que, durante sua carreira, Jung teve que se defender frequentemente da acusação de ser místico pelos cientistas, e de ser ateu ou agnóstico, por religiosos.

A temática da religião é realmente central dentro da Psicologia Analítica de Jung, encontrando-se presente ao longo de suas Obras Completas. Apenas para citar algumas obras do autor que abordam diretamente a relação entre psicologia e religião há: Resposta à Jó, Psicologia da Religião Oriental e Ocidental, Símbolo da transformação na missa, sem contar as outras obras como Aion, estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo, e o prefácio de I Ching, de Richard Wilhelm.

A definição dada por Jung para o que é religião – e para o que é numinoso –  pode ser encontrada na obra Psicologia e Religião. Esta obra é a transcrição de três conferências sobre o tema da psicologia da religião dadas na Universidade de Yale, as Terry Lectures. No que diz respeito ao termo religião, Jung utiliza-se da etimologia proposta por Cícero, a religião como oriunda da palavra latina relegere:  “Antes de falar de religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é – como diz o vocábulo latino relegere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de numinoso, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico, não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais vítima do que seu criador” (JUNG, 1995, p. 9).

E na continuação: “Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego ordinário do termo: ‘religio’, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados” (JUNG, 1991, p. 10).

De modo que o religioso, desde que seja definido de forma correta, é uma questão que não pode ser ignorada por uma teoria psicológica. Como as culturas são muito variadas e, neste sentido, cada cultura apresenta sua forma de lidar com o religioso de forma particular, faz-se necessário um amplo estudo. Com o conceito de inconsciente coletivo, este estudo passa a ser importante não apenas para a antropologia, história da religião ou ciências da religião, mas igualmente importante para a psicologia. Pois conteúdos simbólicos, que foram elaborados ou expressos em culturas totalmente diferentes, aparecem em sonhos e sintomas dos pacientes na clínica.

Deste modo, desde o rompimento com Freud, Jung passa a desenvolver uma concepção totalmente diferente da psique e da energia psíquica. As diferenças individuais são estudadas a partir do conceito de tipos psicológicos. Determinados conteúdos não podem ser entendidos ou explicados tendo-se em vista os conceitos de Freud ou Adler, ainda que estes conceitos possam ajudar na medida em que dizem respeito ao inconsciente pessoal. Para outros conteúdos, deve-se ter em mente o conceito de inconsciente coletivo e arquétipo e, também, uma outra forma de interpretação que não reduza tais conteúdos à história de vida de cada um, mas relacione-os com a história da humanidade, já que fazem parte do inconsciente coletivo.

6) Conclusão

Jung escreveu em diversos textos sobre a personalidade de Freud, como sendo um autor genial, que com o seu conceito de inconsciente influenciou toda a cultura ocidental. A partir de suas descobertas clínicas, Freud se aventurou a analisar outros aspectos da cultura, além da psicopatologia. Tais descobertas, foram, portanto, extremamente influentes e, tendo uma personalidade forte, Freud centrou todo o desenvolvimento da psicanálise ao seu redor. Teóricos como Adler, Jung e (alguns anos após Wilhelm Reich) que discordaram de seu ponto de vista, não puderem continuar contribuindo com as elaborações psicanalíticas e tiverem que criar, à parte, suas próprias teorias e abordagens.

Assim, Jung discordava da ênfase excessiva na sexualidade, que foi central na psicanálise até 1920, quando Freud reformula totalmente seus conceitos, passando a pensar no psiquismo sob nova dinâmica, a pulsão de vida versus a pulsão de morte. Mas até a época do rompimento de Adler e Jung, a sexualidade era um princípio central e embora tenham sido feitas reelaborações, ela continuou tendo relevância na psicanálise.

Com o texto de 1912, Jung passa a pensar a libido não como uma “força” psíquica apenas sexual. Para ele, a libido deveria ser pensada como uma energia em geral, que poderia ser transformada ou reutilizada em outros âmbitos e áreas. A partir de experiências pessoais e também a partir do contato com pacientes, ele começa a desenvolver o conceito de inconsciente coletivo, bem como a notar as diferenças entre os pacientes – e as diferenças nas teorias filosóficas, psicológicas, artísticas – através da ideia de tipos psicológicos.

Conclui-se que Jung não se transforma no herdeiro de Freud. Em seu ponto de vista, ele continuou dando a importância devida à sexualidade, (e ao princípio de poder de Adler), porém buscou entender como determinados símbolos psíquicos não são sexuais ou relacionados ao poder, mas devem ser compreendidos por sua relação com os símbolos religiosos ou sagrados não apenas de nossa cultura como também de todos as demais. Uma dada concepção do que transcende o cotidiano e as experiências do dia a dia está e estará sempre presente e deve ser objeto da psicologia.

Referências Bibliográficas

JULIEN, Phillipe. A psicanálise do religioso: Freud, Jung, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010

JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1984.

______. Estudos Experimentais. Petrópolis: Vozes, 1997.

______. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1998.

______. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

______. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.

______. Psicologia da Religião Ocidental e Oriental. Petrópolis: Vozes, 1980.

______. Psicologia do Desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1983

______. Símbolos da Transformação: Análise dos Prelúdios de uma Esquizofrenia. Petrópolis: Vozes, 1986.

______. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

FRANZ, Marie-Louise von. C. G. Jung: seu mito em nossa época. São Paulo, Editora Cultrix, 1997