Minha primeira crise de pânico aconteceu em 1999, quando eu tinha 17 anos, e seguiu com altos e baixos até meados de 2005 ou 2006, quando gradativamente passou a diminuir, até praticamente cessar por completo.

Pretendo aqui relatar uma espécie de cronologia do que vivenciei nesse período, ainda que saiba do risco de talvez não ser tão fiel aos fatos. Primeiro, por crer que a memória é traiçoeira. Depois, por crer que uma pessoa em crise de pânico confere muito mais peso aos fatos do que eles realmente teriam. Por fim, por ter sido eu o protagonista. Afinal, quem está afundado nas profundezas do mar não é a melhor pessoa para falar sobre a tempestade que irrompe na superfície.

Mas prefiro contar, mesmo assumindo os riscos. E dizer, antes de mais nada, que me curei graças a três coisas: a um encontro com uma Xamã, a um conselho do meu irmão, e à Woody Allen.

O início

Minha primeira crise de pânico aconteceu dentro da sala de aula, em meados de 1999. Quando aquilo irrompeu, foi como se uma vivência de pesadelo se materializasse no mundo real.

Se eu não estivesse tão assustado para ligar os pontos, teria compreendido que as crises eram a fumaça apitando de uma panela de pressão. Dentre os fatores que cozinharam até entrar em ebulição, o que temperava tudo era um profundo sentimento de inadequação – algo bem familiar para todo adolescente que foi expulso à contragosto do paraíso infantil, e então precisa adentrar em maior ou menor medida no mundo das obrigações e da luta pela sobrevivência.

Havia uma inadequação emocional, que piorava dentro da escola, ambiente onde eu acreditava que minhas aptidões eram subaproveitadas, e soterradas por obrigações burocráticas e matérias com as quais eu não tinha afinidade. Paralelo a isso, havia uma inadequação física, hormonal, em relação a espinhas, pelos, odores, a toda essa emergência de uma nova pele e um novo corpo, mais rude e menos flexível que alguns anos atrás.

Ainda sobre flexibilidade, só hoje eu compreendo que, já naquela época, meu problema de coluna já emitia alguns sinais. Passar longas horas sentado ininterruptamente nas duras cadeiras da escola certamente foram um estopim para as crises. O fato de estar diante de um incômodo físico perene e a obrigação de não poder fazer movimentos bruscos e sequer se levantar foi o fermento que fez esse bolo desesperado crescer e estourar.

Essas são algumas das razões, talvez todas, que eu entendo como responsáveis. E, por causa disso ou não, ali estava eu, sentindo arrepios, frio na barriga, palma da mão suando, como se estivesse diante de um leão ou um predador qualquer da savana. As cores do mundo pareciam mais nítidas e próximas, e eu logo me via perdido em detalhes irrelevantes, como as trincas na parede, ou a textura de uma cadeira. Parecia que minha sanidade escapava entre os dedos, como se eu tentasse segurar água com as mãos.

Vale lembrar que eram tempos onde não se tinha o acesso a informação que temos atualmente, sobretudo com a internet. Assim, nessas primeiras crises de pânico, eu tive o agravante de sequer ter noção do que estava se passando. Foi completa e absolutamente desesperador. Eu ingenuamente acreditava que estava ficando louco – sem ter a maldade de compreender que os loucos nunca se crêem loucos. Ou seja, enquanto há o temor de enlouquecer, há sanidade. Teria sido bom ler ou ouvir algo assim naqueles dias cinzentos.

Em uma das piores crises, eu acreditei intensamente que iria cometer uma loucura em meio a uma das aulas – algo como saltar de uma janela, ou gritar compulsivamente. Quando deu o sinal para o intervalo, lembro que um amigo comentou como minha postura na carteira era engraçada, parecia que eu me agarrava a ela, amedrontado.

Sobre isso, devo dizer que, em tantos anos que sofri dessas crises, nunca tomei nenhuma atitude drástica ou precipitada que fosse. Não; apenas sofri, em silêncio. E posso dizer que o mesmo ocorreu com amigos meus que passaram por esse tormento.

Afinal, a dor de uma crise de pânico não é por algo que foi feito; e sim pelo violento medo de que algo terrível irá acontecer em breve. É um medo do futuro à curto prazo, que vai pouco a pouco corroendo seu sistema nervoso e sua tranquilidade. Um medo profundo, de fracassar, de ser ridículo, de fazer alguma bobagem pela qual irá se arrepender pelo resto da vida. Por isso, o problema se manifesta quase sempre na adolescência, época em que sua autoestima está, mais do que nunca, dependente do que os outros pensam a seu respeito.

Somente anos depois eu pude perceber o quanto há um processo químico que faz piorar as crises. Foi algo que intuitivamente fui me apercebendo. Quando irrompia o primeiro lampejo de uma crise, era mais fácil recuperar a calma. Contudo, na medida em que o medo fazia acender novos lampejos, a química do seu corpo já havia ganho boa parte das veias, e seu corpo já está úmido de cortisona ou algo assim. Era uma bola de neve que crescia despenhadeiro abaixo. Por fim, só mesmo o término da aula e a ida para casa poderiam, afinal, me oferecer tranquilidade.

Em uma das crises, uma das mais desesperadoras, fui testemunha de um impressionante e belo fenômeno. Ali, no fundo do poço, é que pude sentir na pele uma das mais bonitas capacidades humanas de dar a volta por cima e se recuperar. Foi uma prova de como o inconsciente humano pode usar de símbolos e da arte para curar uma psique atormentada, algo que eu só entenderia anos depois, após ler obras como O Homem e Seus Símbolos, de Carl Gustav Jung.

Meu nível de angústia em meio a uma das aulas era tamanho, que comecei a chorar. Em silêncio, fiz mentalmente uma oração, perguntando a algo além de mim – o cosmos, Deus, o universo, qualquer ente superior que pudesse me ouvir – porque aquilo estava acontecendo comigo. Então, logo apareceu uma música na minha cabeça. Aquilo me intrigou, porque eu não ouvia aquela música específica há dias; ou seja, não havia motivo para eu pensar naquela melodia. Era bem claro para mim, mesmo apesar do desespero, que eu não havia conscientemente provocado aquela música na cabeça.

Me atentei na letra. Era Beautiful Boy, do ex-beatle John Lennon. As primeiras estrofes dizem:

Close your eyes (feche os olhos)
have no fear (não tenha medo)
The monster’s gone (o monstro se foi)
He’s on the run (ele deu no pé)
And your daddy’s here (e seu pai está aqui)
Beautiful beautiful beautiful, beautiful boy (belo, belo, belo, belo garoto)

Quando me dei conta da letra, que havia pousado sobre mim repentinamente, eu comecei a chorar muito, tive que fazer um esforço enorme para que ninguém notasse. E, ao lembrar desse dia, não sei dizer se notaram ou não, porque já nem me importava mais. Só me lembro da sensação imensa de que havia um Deus, ou uma força maior, que se comunicava comigo, que dizia a seu modo – com a linguagem do acaso – de que eu não deveria me render ao medo.

Esse episódio me deu força para suportar firmemente as crises que viriam. Porque elas continuaram a aparecer. Eu não estava curado.

Só tive uma trégua quando decidi mudar de escola. Foi algo que fiz meio à contragosto. Em 1999, eu estudava em uma escola particular, repetindo o primeiro ano. E, dado o meu boletim, tudo levava a crer que eu repetiria novamente. Seria – pasmem – minha quarta bomba (ou seja, a minha inadequação com a escola não era só qualitativa, mas também quantitativa). Minha intensa dispersão não passou despercebida pelos professores, que passaram a pegar no meu pé com frequência.

Assim, saí daquele colégio e fui para uma escola estadual. Foi algo que me fez muito bem. Houve um estranhamento no início, a começar pelo prédio, pela aparência prisional que o cimento frio e os tijolos à mostra emanavam. Além disso, estudei em escolas particulares durante anos, desde à quinta série, e eram ambientes onde eu conhecia a maior parte dos alunos. No Estadual (que era como chamávamos a escola, usando do artigo masculino “o”), me vi diante de muitos rostos estranhos. E não só eu não conhecia aqueles novos colegas, mas também havia o choque de estar ao lado de pessoas de origens mais humildes.

Mas apesar da mudança brusca, fui feliz no Estadual, e as crises de pânico praticamente cessaram em quase que um ano e meio ali. Antes de mais nada, os afetos eram mais autênticos, verdadeiros. Me identificava com o senso de humor pueril e a espontaneidade dos novos colegas. Era um humor menos cruel que no colégio particular. Aquilo também me fez bem, porque era um alívio para um sentimento de culpa que me corroía no interior.

Eu acreditava que as crises de pânico poderiam ser uma espécie de carma, oriundo do fato de eu ter praticado, sozinho ou em grupo, o que hoje em dia chamam de bullying. Tirar sarro de colegas de escola era quase que uma reação infantil para o meu próprio sentimento de inadequação. Como que um antídoto bárbaro, onde você berra a respeito da suposta inabilidade do outro para que não vejam a sua própria inabilidade. Devo dizer que o destino foi rápido em me cobrar o preço dos meus atos.

No estadual, eu subitamente me via diante de colegas que, em outros tempos, teriam sido alvo certeiro de piadas esnobes e depreciativas. Haviam muitas pessoas ali que supostamente estavam inadequadas – isso se você considerar que o “adequado” seria se situar dentro de um padrão de beleza vigente. Para começo de conversa, a maioria das pessoas eram negras, em diferentes matizes, tons, níveis, mas todos unidos pelas origens comuns da classe trabalhadora. Quando cheguei no Estadual, as meninas da minha sala me notaram não por dotes físicos, mas sim por características associadas a um corpo branco. Por exemplo, me lembro de meninas elogiarem ostensivamente o meu cabelo, que na época eu usava comprido. A maioria delas tinham cabelos cacheados ou crespos.

Naquela época, não ouvíamos falar tanto sobre noções de ser politicamente correto. E, para os mais jovens – sobretudo se pertencessem à classe média –, atitudes racistas eram quase que naturais, ainda que houvesse a consciência de ser algo errado. No meu círculo de amizades de antes do Estadual, se faziam piadas com negros da mesma forma que com gordos, com mulheres, com pessoas mais velhas e tudo mais. O nível das piadas variava de pessoa para pessoa, uns eram mais cruéis que outros. Não prestávamos contas a nenhum código de conduta, e preferíamos tratar as regras morais como um brinquedo onde você estica e puxa, testando seus limites, sem compromisso.

Ao assimilar em algum nível as perspectivas estreitas que se faziam disponíveis para adolescentes de classe média, eu desenvolvi um instinto para ser esnobe diante de pessoas que fugiam dos padrões que a sociedade tinham como bem-sucedidos. E, de repente, tudo isso ruiu, fosse porque eu não tinha mais a companhia dos meus antigos amigos do meu lado, fosse porque eu estava emocionalmente frágil, e, naquele momento, a fragilidade me servia como uma espécie de espelho da alma, escancarando para mim o quão cruel e presunçoso eu tinha sido até então.

Além do mais, havia pouco rigor no Estadual, e isso me deixava mais à vontade. Podíamos levantar e sair de sala quando bem entendêssemos, sem sequer precisar pedir licença. Ainda que as salas ali parecessem celas de presídios, eu paradoxalmente me sentia livre. E meus colegas também, visto que eles frequentemente eram flagrados nas aulas jogando baralho, brincando de lutinha, ou mesmo correndo por cima das carteiras.

Meus colegas moravam nas periferias da cidade. Quando fui até a casa de alguns deles, fosse para tocar violão ou fazer trabalhos em grupo da escola, fiquei espantado com a distância que tinham que percorrer diariamente. Alguns deles já trabalhavam, em diversas funções, e haviam até os que se dedicavam a atividades criminosas. Haviam os que tentavam levar os estudos a sério, apesar da anarquia que imperava ali. A maioria deles não tinha muita perspectiva de um futuro promissor, e se preocupavam mais com o imediato, a sobrevivência.

Naquela época, as crises deram um tempo, e gradualmente comecei a relaxar. Passei a sair, a ir para festas, a beber. Tive relações de curta duração com meninas das mais variadas classes e estilos. Mesmo no terceiro ano, quando voltei para um colégio particular em Conselheiro Lafaiete, me via ainda bem tranquilo.

As crises de pânico pareciam ter sido coisa do passado.
Mal sabia que as piores delas ainda estariam por vir.

Vultos que ainda nos espreitam

No final de 2002, passei no vestibular para o curso de Letras da UFSJ, e, logo, embarcava de mala e cuia para a cidade de São João del Rei. Foi uma época excitante e de muita adrenalina, afinal, junto com a empolgação de ir morar sozinho pela primeira vez, havia também um certo receio de ficar longe da casa dos pais.

Os anos de crises de pânico haviam me concedido certo senso de empatia, e uma abertura para todo e qualquer tipo de pessoa. Assim, fui fazendo amizades rapidamente naqueles meses iniciais de universidade. Além disso, a superação das crises tinham deixado no ar a possibilidade de adotar uma espécie de comportamento extrovertido. Tornei-me um “arroz de festa”, galanteador, animado, piadista, e, claro, chegado numa cerveja.

Durante o ano de 2003, houveram épocas em que eu saía e bebia todos os dias, de segunda `segunda. Depois de ler Fausto, de Goethe, interpretei que eu deveria entregar minha vida para a esbórnia, e, só depois, ao ficar mais velho, poderia enfim me acalmar e buscar um estilo de vida mais pacato. Essa decisão coincidiu com as festas de república, e, principalmente, com a abertura de um boteco chamado Nômades, que contava com trilha sonora roqueira, sinuca, decoração underground, e som ao vivo de vez em quando. Era uma rotina que convivia com as aulas e as obrigações do curso de Letras.

Nessa época, o fantasma das crises de pânico reapareceu, mas de uma maneira com a qual foi, de certa forma, mais fácil de lidar. Aconteceu em uma madrugada, quando ouvi alguém bater na porta do meu quarto. Fiquei intrigado, principalmente pelo horário. Quando abri, me deparei com um companheiro de república, tremendo de bater queixo. Pela primeira vez, pude enxergar o problema do pânico não como protagonista, mas como espectador.

Quando meu amigo era tomado pelas suas crises, ele logo pegava um caderno, para então disparar a escrever, sem parar. Era como se o exercício da escrita fosse uma forma que descobriu para manter a sanidade. Suas crises, assim como as que eu tive anos antes, envolviam um medo de enlouquecer.

Certa vez, ele me pediu para leva-lo à casa de um outro amigo, que aplicava os passes ensinados no Seicho No Ie. Era uma noite fria, e meu amigo fez questão de sair enrolado em um cobertor. Naquela madrugada de inverno, éramos apenas nós nas ruas, caminhando pelas quebradas de São João del Rei. No caminho, fui contando para ele sobre como fiz para superar as crises de pânico. Em poucos quarteirões, ele subitamente percebeu que meu relato o deixou mais calmo (ainda assim, ele quis ir receber o passe, só para não perder o hábito).

Apesar de eu me encontrar em uma situação emocional mais estável, onde até mesmo podia ser capaz de ajudar em algum nível um amigo que padecia das tristes e familiares crises de pânico, eu percebia que esse problema voltava a me rodear. Novamente, o estopim ocorria nas aulas, geralmente nos últimos horários. Hoje em dia, sei que boa parte da culpa talvez se encontre na falta de conforto daquelas carteiras da universidade. Mas na época, eu (que ainda nem fazia ideia dos meus problemas de coluna) me via ainda tendo que lidar com o problema. Ainda que acreditasse que ele estivesse sob controle.

Até que me veria lidando com a pior de todas as crises pelas quais já passei.

O fundo do poço

Todos os fins de semana, eu deixava minha república em São João del Rei e viajava para a casa dos meus pais, em Congonhas. As saídas para festas e as bebedeiras prosseguiam, independente da cidade. Logo no início de 2004, alguns amigos de Congonhas me convidaram para uma festa, que aconteceria na casa de uma conhecida nossa. Era longe de onde eu morava, mas fui a pé, já bebendo pelo caminho.

Lembro-me de ter sido uma festa ótima, animada, e que durou por toda a madrugada. Em dado momento, a cerveja acabou, e logo me vi com um litrão de batida de menta nas mãos. Finda a festa, desci a pé para o centro da cidade, e foram amigos meus que me narraram depois o estado deplorável em que eu me encontrava. Já tendo bebido toda a menta, eu logo estava dançando com bêbados desconhecidos no meio da rua, dionisiacamente.

No outro dia, eu naturalmente acordei com uma ressaca absurda; mas, ainda empolgado pelos eventos da noite anterior, ignorei a fadiga física e passei o dia de maneira animada, como se ainda estivesse embriagado. Eu falava alto, dava risada, e me movia bastante.

Mais ou menos no fim do dia, quando o sol se punha, notei que havia algo errado. Era como se substâncias químicas dentro do meu corpo se voltassem contra mim. Fui tomado por um mal estar intenso, como se eu não fosse mais o juiz de mim mesmo. Era algo profundo, como se jogassem uma bigorna sobre meu espírito.

De repente, me vi atormentado, chorando, tremendo. Meu pai ficou desesperado ao me ver naquele estado. Ele me pegou pelos braços e me levou para um cômodo afastado da casa, me deitou no chão, enquanto eu me debatia. Lembro que ele me segurava, enquanto gritava bem alto “escuta!! Você não é a sua mente!! Não é a sua mente!”. Durante bons minutos, ele berrou esse mantra várias e várias vezes, enquanto eu me contorcia em um choro ruidoso.

Entrei no chuveiro, e me sentei no chão, sentido uma espécie de derrota interna, olhando para a parede, para o nada, vitimado pela mais intensa das crises de pânico já vividas. Minha mente estava dominada por pensamentos altamente contraditórios. Na época, eu lia obsessivamente livros de um guru indiano chamado Bhagwan Shree Rajneesh, mais conhecido como Osho. Devo dizer que aquelas ideias poderiam ser úteis para alguém já maduro na caminhada espiritual. Mas para um jovem imaturo, educado em um meio judaico-cristão-latino-ocidental, e entregue a uma farra etílica e universitária, aquilo era uma bomba atômica psíquica.

As leituras do Osho me deixaram consideravelmente apartado da realidade. Eu vivia em um mundo paralelo, alimentando delírios e sentindo um desprezo por tudo que representasse o status-quo. Eu não via redenção possível em nenhuma religião ou instituição estabelecida, muito menos em relação às pessoas que viviam de maneira supostamente profana ao meu redor. Tudo que importava era a iluminação, era o esvaziamento do ego, e a purificação dos pensamentos. A teoria, basicamente, era essa. Só que minha prática ultimamente não tinha sido nem um pouco pura, iluminada, ou mesmo redentora.

Assim, as intensas crises de pânico que tomaram conta de mim nos meses seguintes tiveram motivos físicos, emocionais, mentais, existenciais, etc. A bebida tinha me enfraquecido fisicamente, me deixando suscetível a químicas internas do corpo que reforçavam a sensação de mal estar. As leituras do Osho me deixaram desconfiado de tudo a meu redor. Ao perceber o filho em tamanha cacofonia das ideias e dos sentidos, meu pai me levou para um passeio no sítio Sertãozinho, localizado na Serra da Moeda, pertinho de Congonhas.

Na verdade, seria mais adequado chamar o Sertãozinho de santuário. Aquele lugar mágico, onde até as cercas de madeira ao redor são pintadas com imagens e símbolos de cura, representa como que um bálsamo para tantas pessoas que buscam experiências mais sagradas, subjetivas, espirituais. Quem coordena todas as atividades por ali é o simpático casal Magdala (conhecida como Magui) e Orestes. O Sertãozinho sedia verdadeiras práticas de cura da alma, como o Ritual do Pão ou a Tenda do Suor. Nessas oportunidades, orientadas quase sempre pela própria Magui, você é convidado a vivências como a de percorrer jardins com formas de mandalas, ou adentrar em uma tenda xamânica incandescente, ou mesmo fazer um pão enquanto medita. Através desses exercícios, temos a possibilidade de acessar diretamente alguns conteúdos inconscientes, reestruturando nossa psique e nossas emoções.

Enquanto meu pai saiu com Orestes, fiquei ali conversando com a Magui, em meio a uma varanda cheia de vasos de plantas e com aromas de ervas frescas. Narrei sobre todo o drama que se passava em minha vida. Depois de me ouvir atentamente, ela me alertou, sobretudo, sobre os livros do Osho, contando que já conheceu pessoalmente alguns sannyasins (discípulos) que moraram na Índia e tiveram contato direto com ele. Algumas dessas pessoas claramente não tinham estrutura para lidar com as ideias libertárias que ele pregava, mas, ainda assim, o próprio Osho as teria exposto com seu sedutor radicalismo. Muitas dessas vidas, de pessoas que confiaram e devotaram sua vida à ele, acabaram arruinadas, com casos de loucura, fobias sociais, imersão em drogas, e diversos outros problemas psíquicos. Eu mesmo conheci, alguns anos mais tarde, diversas pessoas em São João del Rei e em São Tomé das Letras que passaram por experiências parecidas após lerem livros do Osho. Quase todos sofreram com crises de pânico, e alguns ficaram anos sem sequer sair de casa, por vezes tomando remédios para depressão, deixando de estudar e de se divertir.

Naquela conversa, a gentil e sábia Magui me compartilhou um conselho valioso, que passou a nortear minha vida desde então. Ela mencionou a necessidade de se trabalhar o elemento “terra” em minha vida. O que seria essa terra? Basicamente, envolve a luta material pela sobrevivência, a aceitação de que vivemos em um mundo material, que exige de nós um emprego, uma função social, uma estrutura de vida, etc. Ela me alertou para o fato de que a busca espiritual, por mais bem intencionada que seja, pode fracassar caso não exista uma sustentação – material, mental, emocional. O elemento “terra” aí tem significados profundos: ele envolve a sedimentação não só das condições materiais de vida, mas das ideias, das emoções, do inconsciente psíquico. Sobre as leituras do Osho, ela mencionou que não era justo invalidar todos os seus ensinamentos; de fato, há passagens belíssimas, úteis, profundamente válidas. Mas o conselho dela era que eu, antes de mais nada, fizesse a minha “terra”, cuidasse das tarefas urgentes que dizem respeito à minha sobrevivência. Dedicar à universidade, fazer atividades físicas, me alimentar melhor, etc.

Poucos dias depois, em maio, mais precisamente no dia das mães daquele 2004, decidi parar de comer carne, uma prática que tenho levado comigo pela vida. Contudo, apesar de algumas decisões práticas que surtiram efeito mais ou menos rápido, eu ainda tinha muitas dúvidas em relação ao curso de Letras, que já não me parecia atraente, e cujas perspectivas profissionais para o futuro eram indefinidas. E, como se não bastasse, brigas e intrigas bobocas fizeram desmanchar minha antiga república. Em poucos dias, os moradores buscaram outros lugares e eu me vi ali sozinho na nossa antiga casa coletiva.

Numa dessas ocasiões, recebi a visita do meu irmão. Era época do Inverno Cultural de 2004, e a cidade de São João del Rei sediava diversos shows e oficinas. Em certa noite, aconteceria um show do violonista Pereira da Viola, no palco da Rotunda (um belo espaço cultural que, infelizmente, não se encontra mais aberto para o público). Comentei que estava a fim de ir, mas, como de costume, o temor de ser assolado por uma crise de pânico me fez desistir da ideia.

Ao ouvir minhas palavras, meu irmão ficou visivelmente indignado. Contudo, em vez de se agarrar em retóricas supostamente sofisticadas ou a sermões moralistas, ele simplesmente se dignou a me dizer:

– E daí??

Era essa a resposta para tudo que eu falava. Eu imaginava a hipótese de eu enlouquecer no meio da Rotunda, e ele : “e daí?”. Depois eu dizia que eu poderia talvez cair, e todo mundo me olhar. “E daí? Você começa a dançar no chão, uai! Você pode dar risada do seu tombo! Dane-se se você cair!”.

De maneira firme e enfática, ele me disse que eu não só deveria ir, mas deveria agir como se eu não tivesse nenhuma síndrome do pânico. E se eu me visse acometido por alguma das crises? “Deixa rolar! Foda-se. Vai no show assim mesmo!”.

Imbuído de uma inesperada coragem, me vesti e fui no show. Dancei bastante, encontrei amigos, e, devo dizer, não houve o menor vestígio de crise alguma. Era como se eu nunca tivesse passado por esse problema. De repente, havia um amuleto em minhas mãos, uma jóia composta de duas palavras: “e daí?”.
Uma das coisas que me fez curar foi constatar que, à grosso modo, as crises de pânico são como que uma construção imaginária que erigimos em nosso redor. Como no filme do Pink Floyd, erguemos um muro mental e emocional, algo que acreditamos ser tão forte e real como qualquer muro de verdade.

A atitude que passei a ter depois daquele dia no Inverno Cultural foi a de simplesmente passar por sobre o muro, me dar conta de que é imaginário, para então atravessá-lo, como se fosse um nevoeiro. Claro que, no início, isso exigiu certa dose de coragem. Para quem está de fora, parece bem estúpido que uma pessoa condicione tanto o seu comportamento por causa de estruturações mentais e emocionais como essas. Mas esse mundo virtual não deixa de ser algo completamente palpável no cotidiano de todos nós, mesmo os mais sãos dentre nós. É a razão pela qual nos apaixonamos, ou largamos o emprego, ou sonhamos com uma vida melhor, ou criamos guerras, ou passamos em um concurso. Se não organizamos nosso universo interior, corremos o risco de ser dominados por ele.

De tanto atravessar muros de fumaça, fui me acostumando. Essa coragem foi aos poucos alcançando níveis que eu jamais imaginaria. Como, por exemplo, falar em público. Era esse um dos meus maiores temores. Contudo, comecei a me arriscar, sempre com aquela mesma postura de confrontar um cenário ruim da minha imaginação. “E daí? E se eu gaguejar? E se meu raciocínio travar enquanto eu estiver falando? Vou sobreviver. Não é o apocalipse, é apenas um mal dia para falar, só isso”.

Foi nessa época que chegou às minhas mãos uma biografia do cineasta americano Woody Allen. Me chamou a atenção o fato de que aquele sujeito peculiar – um judeu baixinho, calvo, magricela e desajeitado – pudesse representar um modelo tão interessante de comportamento para mim. De repente, percebi que ser alguém meio imperfeito e desalinhado era uma alternativa, um caminho não só viável, como até mesmo atraente. Eu não precisaria entrar em pânico caso eu fizesse algo desajeitado. Era mais fácil rir de mim mesmo. Tudo que eu precisava fazer era baixar as minhas expectativas, deixar de exigir de mim mesmo que agisse como alguém impecável e forte. Bastava ser apenas humano, passível de erros e inconsistências.

No fundo, acredito que as crises de pânico são sintomas de um descolamento da pessoa com a realidade. Elas são fruto de uma distorção entre o que se é e o que o mundo espera de você. Eu superei o pânico quando passei a respeitar e até mesmo apreciar minhas limitações e defeitos. Afinal, mesmo os melhores entre nós tem suas limitações e defeitos.

Epílogo

Em meados de 2008, um amigo meu contou sobre um exercício bem interessante da neurolinguística, útil para pessoas que sofrem de depressão ou crise de pânico. Trata-se de resignificar suas lembranças mais atormentadas, imaginando-as como se fossem cenas de um desenho animado, daqueles bem pastelões, a la Tiny Toons. Em um exercício desses, as crises de pânico poderiam ser, por exemplo, aparições do Patolino ou do Frajola atirando tortas de morango no seu rosto.

Exercícios como esse não só ajudam a reorganizar e reestruturar sua mente e suas emoções. Eles também permitem que você crie um distanciamento do seu problema. Quando estamos deprimidos, passamos a nos identificar com nossos problemas, até o ponto em que não sabemos mais o que somos nós e o que são nossas angústias. Lembram-se do mantra que meu pai berrou no meu ouvido quando eu passava pela minha maior crise? “Você não é a sua mente”! É isso. Ele estava 100% certo.

Quando temos uma prática de vida que reitera o distanciamento dos próprios pensamentos e fantasmas (principalmente através da meditação), então criamos as condições perfeitas para superar quaisquer crises existenciais que nos estejam tirando o sono e a alegria. Dentre elas, as crises da síndrome do pânico.

Como diz a letra de uma canção do Flavio Venturini, “O medo não cria/não traz alegria/não faz avançar/o amor”. Não que o medo não seja útil – ele é, nos momentos certos. Um músico ou um ator precisa ter certo medo do palco, para apenas assim poder tocar ou interpretar divinamente. Em toda grande performance, há o mérito do medo. Sem ele, seríamos excessivos, saltaríamos de ponta por abismos grandes o suficiente para nos destruir.

O medo, bem temperado, nos devolve a humanidade, nos dá um senso de realização cujo tamanho é suficiente para caber na vida. Sem excessos, sem arestas grandiosas – o tamanho ideal. O medo é apenas a outra face da moeda com a qual pagamos pela nossa felicidade. Devemos ser gentis e cuidar bem dos nossos medos. Porque reza a lenda que, se mandamos os demônios embora, os anjos também nos abandonam junto. Essa peleja com o medo é universal, pertence a todo ser vivo, e só cessa quando morremos. Ter medo é estar vivo – e é melhor para nós que possamos reconhecer a beleza por trás disso.

Calmo, mas hiperativo artisticamente. Me arrisco em literatura (contos, romances, poemas), ilustrações e quadrinhos, composições musicais e gravações. Conheça meu site - Rafael Senra