Para que se possa governar o Estado ideal pensado por Platão, o governante deve possuir algumas características, as quais compõem a natureza do espírito filosófico. Assim, delimitamos nosso texto visando apontar quais são as características que devem ser encontradas nos governantes. Este texto abarca o Livro VI da República platônica.
O Livro VI é iniciado com a distinção entre quem é filósofo e quem não o é. A união entre filosofia e política só ocorre quando os filósofos passam a governar. É essa união que extingue o mal das cidades. Essa é a condição para a felicidade particular e da cidade. Assim, Sócrates inicia sua busca pela natureza do espírito filosófico, busca o filósofo verdadeiro para compará-lo à cidade ideal, já que foi estabelecida uma relação de analogia entre cidade e indivíduo.
Verdadeiros filósofos são os que se atém à contemplação da verdade, à essência das coisas, e não com a opinião.O filósofo aspira a sabedoria e não se perde no campo do múltiplo e do que varia, ele tem a capacidade de apreender o ser que é eterno, imutável. Para escolher quem tem ou não que governar, deve-se analisar quem é capaz de cuidar das leis e das instituições da cidade. Os filósofos podem assumir essa função, porque são capazes de apreender as ideias e leis eternas, e, consequentemente, podem guardá-las. Os governantes devem instituir, tendo na alma um modelo claro, as leis do belo, do justo e do bem.
Sócrates afirma que os governantes devem ser os que conhecem tudo o que existe e também “que em matéria de experiência em nada ficam a dever àqueles que lhes são inferiores em nenhuma parte da virtude” (Rep., 484 d). O mestre da ágora questiona, então, como é possível que experiência e conhecimento encontrem-se unidas no governante. Essa pergunta aponta para a busca da natureza dos governantes, isto é, dos filósofos.
O primeiro ponto sobre a natureza destes é de que são apaixonados pelo conhecimento que pode revelar algo sobre a essência eterna, e ao contemplar as essências, a alma filosófica deixa sua própria vida ou morte em segundo plano. Outra condição para ser governante é a de que o filósofo deve amar a verdade e odiar a mentira: “É absolutamente necessário que o indivíduo amoroso por natureza se compraza em tudo o que pertença ao objeto amado ou tenha com ele alguma afinidade” (Rep., 485 c), já que a verdade é o que mais tem afinidade com a sabedoria. Assim, o filósofo deve se empenhar, desde muito novo, em alcançar a verdade.
O verdadeiro filósofo se alegra com os prazeres da alma – pois seus desejos são dirigidos para o estudo ou para atividades semelhantes – e se abstém dos prazeres do corpo. O homem que possui essa natureza deve ser temperante e não deve cobiçar dinheiro, já que isso foge ao seu caráter.
A natureza filosófica pode ser diferenciada da natureza que não é filosófica em mais outro aspecto: é de natureza filosófica a alma que busca o conjunto das coisas divinas e humanas em universal, pois essa natureza é de quem possui o espírito elevado e vê o conjunto das coisas.
O verdadeiro filósofo possui como características a simplicidade, a coragem, a modéstia, deve ser generoso, insubordinado, justo e meigo no convívio social. Assim, afirma Sócrates, para determinar se a alma é ou não de natureza filosófica, deve-se examiná-la desde de muito cedo, buscando ver se é justa e meiga ou se é rude e insociável. Deve-se examinar também se alma tem facilidade para aprender ou se é ignorante, pois só quem tem facilidade para aprender que não toma a atividade mental como fastidiosa e que obtém avanços. Assim, também para que aprenda, a alma deve possuir boa memória para ser filosófica.
As almas harmoniosas e conformadas são filosóficas por tenderem, por natureza, à moderação e à graciosidade. Deve-se buscar os espíritos que se deixem guiar facilmente para a essência das coisas.
Todas as qualidades expostas “estão intimamente ligadas entre si e são indispensáveis para a alma desejosa de atingir o pleno e perfeito conhecimento do ser” (Rep., 486 e). Assim, só possui natureza filosófica quem for naturalmente dotado de memória, de inteligência, de magnanimidade, de graça. A alma deve ser amiga e aliada da justiça, da coragem e da temperança.
O verdadeiro filósofo deve ter a verdade como guia – esta é a condição para participar da verdadeira Filosofia. O homem dotado dessa natureza não desanima em sua tentativa de apreender a essência dos fenômenos com a parte da alma que lhe é destinada para isso – a noêsis – já que são de mesma natureza a nôesis e a essência dos fenômenos. Ao aproximar-se e unir-se ao ser, inteligência e verdade são geradas. Como a verdade é o guia do filósofo, este vai conforme a pureza dos costumes, conforme a justiça e a temperança.
A natureza do verdadeiro filósofo é rara, e quando não é bem educada, se corrompe e também o faz ao afastar-se da Filosofia. Existem alguns bens que auxiliam na corrupção da natureza filosófica: a beleza, a riqueza, a força física, as relações de parentesco na cidade. Por isso a educação adequada e diferenciada da dos demais habitantes da cidade faz-se necessária, pois é através dela que as virtudes são adquiridas com o tempo.
Como a multidão, ao contrário dos filósofos, não reconhece a existência do belo em si, das ideias, não está de acordo com a Filosofia. Por isso o governo da cidade ideal cabe aos filósofos. A educação filosófica que deve ser oferecida aos meninos e rapazes deve ser de acordo com as idades. Seus corpos também devem ser devidamente educados de modo que suportem as dores físicas.
A natureza filosófica se volta para pensar a essência das coisas e não tem tempo para se ocupar com as atividades dos homens. Só vê as coisas imutáveis e bem ordenadas, se mantém em sua contemplação, acompanhando assim a razão e a ordem de modo que busca imitá-las. O filósofo torna-se ordenado e divino, dentro das possibilidades humanas, se conviver com o que é ordenado e divino. Ao vir aplicar tudo o que contemplou à vida pública e particular dos homens, o faz de acordo com as virtudes.
Assim, a cidade só pode ser feliz se for uma cópia do modelo divino e somente o filósofo pode apreender o modelo divino, já que sua natureza guarda afinidade com o sumo bem.
Deve-se colocar o verdadeiro filósofo à prova no trabalho, nos prazeres, no perigo. Deve exercitar-se em todas as espécies de conhecimento para ver sua capacidade quanto aos conhecimentos mais altos. Assim, o governante tem de se esforçar na Ginástica e nos estudos para chegar ao conhecimento mais alto e apropriado às suas funções, para poder contemplar as virtudes e a justiça. O conhecimento mais alto é a ideia do Bem, e é mediante o conhecimento desta ideia que esses homens passam a compreender tudo. Justiça e virtudes participam desta ideia, por esse motivo são vantajosas. Todo conhecimento só ganha utilidade perante a ideia do Bem, pois ele dá o ser e a essência ao objeto conhecido.
Em suma, Platão apresenta as seguintes qualidades que a alma do filósofo deve possuir: o amor pela ciência por ser através desta que a alma apreende a essência eterna; o amor pela verdade haja vista que ciência e amor pela verdade estão intrinsecamente ligados; grandeza de espírito pois “nada pode ser mais antagônico do que a baixeza para uma alma que se esforça permanentemente para alcançar o conjunto das coisas divinas e humanas em universal” (Rep., VI, 486 a.); a alma filosófica deve ter facilidade em aprender porque aquele faz muito esforço e tem pouco sucesso passa a não ter amor pelo que faz; boa memória com a finalidade de reter o aprendido e de adquirir a ciência; moderação e boa vontade. São essas, pois, as características que formam a natureza do governante do Estado ideal, isto é, a natureza filosófica.
Referências bibliográficas:
PLATÃO. A República. Belém : EDUFPA, 2000