Todo átomo do mundo material está jogando xadrez com a morte. Todo homem e mulher sobre a terra. E um dos nossos grandes problemas existenciais está no fato de que não sabemos bem como será a nossa partida em especial.

A expressão “quando o carnaval chegar”, imortalizada em uma canção de Chico Buarque, tornou-se uma forma bem abrasileirada de se referir aos tais “períodos sabáticos”. Morássemos na Antártida, por exemplo, e talvez tivéssemos metáforas sobre a hibernação dos ursos polares.

A expressão funciona, mas ela também permite que a problematizemos. Se pegarmos o verso completo da canção, que diz “tô me guardando pra quando o carnaval chegar”, podemos já refletir sobre alguns pontos. A primeira questão é pensar: para estarmos com nosso potencial e nossas forças em dia quando o carnaval apontar no horizonte, será que basta apenas “se guardar”?

Não adianta nada se recolher em sua caverna e marcar no calendário o seu sagrado roteiro de hibernação, se você não estiver disposto a olhar para si, a se desafiar. E, claro, olhar direito, atento, com acuidade, com aquele olhar de um Touro Indomável desafiando o oponente no ringue – sendo que o oponente aqui é você mesmo.

Em vez do ringue, talvez uma imagem mais adequada para o embate “eu-versus-eu” seja a de uma partida de xadrez. Um exemplo eloquente pode ser pincelado do filme O Sétimo Selo, do diretor Ingmar Bergman: o homem moribundo, que joga xadrez com a morte, na tentativa de permanecer um pouco mais na terra. Vã a tentativa? Ainda que saibamos que todos nós perderemos no final, cada minuto ganho não deixa de ser uma pequena vitória?

Muito astutamente, Bergman deixa em aberto a alegoria sobre o cavaleiro medieval que luta pela vida através do jogo de xadrez. Ele não fala apenas de um homem idoso já próximo da morte física: não, ele fala de todos nós. Somos todos moribundos, e, na verdade, dar as costas ao tabuleiro não implica necessariamente em anular a sua partida de xadrez.

Todo átomo do mundo material está jogando xadrez com a morte. Todo homem e mulher sobre a terra. Somos pó, dele viemos e a ele voltaremos. E um dos nossos grandes problemas existenciais está no fato de que não sabemos bem como será a nossa partida em especial. Alguns jogadores jogam com afinco, fazem as jogadas perfeitas, mas a morte está disposta a aplicar um xeque-mate em poucos lances, amealhando uma vitória rápida. Já outros são jogadores relapsos, descuidados, que por sorte encontram sua oponente igualmente distraída, menos preocupada em mexer as peças do que em afiar sua foice, e por isso a partida acaba sendo longa, lânguida.

Seja como for, a consciência do xadrez com a morte é que nos permite valorizar os períodos sabáticos. Sabemos que nossa cronologia na terra possui um tempo delimitado, e que abandonar tudo e todos não significa apenas um bocejar na eternidade. Sempre temos pendências e assuntos para resolver. Existem peças no tabuleiro que aguardam ansiosamente a sua próxima jogada. Assim, não basta apenas “se guardar” para o carnaval – é preciso buscar o xeque-mate. Do contrário, vai entrar errante na passarela.

E não para por aí. Fico pensando se não é também nossa responsabilidade elaborar novos e revigorantes carnavais. Afinal, somos responsáveis pelas festas – nunca vi chover confete e serpentina de nuvem alguma. Os organizadores também dançam. Somos carnavalescos e passistas a um só tempo. Enfeitamos as passarelas por onde celebraremos à noite toda, como bons Dionísios dos trópicos que somos. Por tudo isso, os períodos sabáticos não envolvem só a faxina na nossa cabeça, mas também a decoração, a fantasia, a trilha sonora, e os bastidores.

Calmo, mas hiperativo artisticamente. Me arrisco em literatura (contos, romances, poemas), ilustrações e quadrinhos, composições musicais e gravações. Conheça meu site - Rafael Senra