Biografia

Santo Agostinho teve um caminho um tanto quanto tortuoso e sofrido até descobrir sua verdadeira vocação. Em 386 depois de Cristo, Agostinho encontrava-se em Milão e estava com trinta e dois anos, chorava no jardim de sua casa. Procurava a resposta que lhe desse sentido à vida. Nesse momento, ouviu uma voz de criança que cantava: “ Toma e lê, toma e lê”. Assim que se levantou para ver de onde vinha o canto, deparou-se com um livro sobre a mesa. Abriu e leu um trecho da Bíblia. Nesse momento, encontrou seu caminho para a salvação, para Deus. Antes de encontrar o que lhe conferiu sentido à vida, foi influenciado pelas doutrinas dos maniqueus e, ao abandoná-las, passou a frequentar a Academia platônica em Milão. Ali conheceu os discípulos de Plotino, que eram também adeptos do platonismo na versão mística. Segundo José Américo Motta Pessanha, introdutor do livro Confissões:

“O neoplatonismo viria a ser a ponte que permitiria a Agostinho dar o grande passo de sua vida, pois constituía, para os católicos milaneses, a filosofia por excelência, a melhor formulação da verdade racionalmente estabelecida. O neoplatonismo era visto como uma doutrina que, com ligeiros retoques, parecia capaz de auxiliar a fé cristã a tomar consciência da própria estrutura interna e defender-se com argumentos racionais, elaborando-se como teologia.” (PESSANHA, 1999, p.8).

Santo Agostinho

Uma parte da vasta obra do bispo de Hipona teve como base os problemas concretos da Igreja que se apresentavam na época. Também produziu livros que dizem dos problemas filosóficos, psicológicos, como Confissões, produz para responder aos pagãos, astrólogos, judeus, maniqueus, donatistas, pelagianos, arianos e apolinaristas, como disse seu amigo São Prosídio. Deixou ao Ocidente cristão uma obra que teria vigência por, ao menos, sete séculos.

A Patrística – filosofia cristã dos primeiros sete séculos feita pelos primeiros pensadores cristãos que eram Padres da Igreja- embasava-se no Novo Testamento para construir sua simples doutrina constituída de regras de conduta moral e da crença na salvação pelo sacrifício de Cristo. Até então, não havia fundamentação filosófica; era uma religião revelada. “Mas era também uma religião que servia como instrumento de contestação da ordem imperial vigente e que vivia em permanente conflito com os senhores romanos“ (PESSANHA, 1999, p.11).

Buscava respaldo nos filósofos gregos e nos que continuaram essa filosofia. Aqui residia a tentativa de conciliar a verdade revelada com ideias filosóficas, mesmo que não se tenha formulado um sistema completo. Na Patrística, os escritos elogiavam o cristianismo e tentavam mostrá-lo como uma doutrina que não se opunha às verdades racionais do pensamento helênico. Santo Agostinho vem e sistematiza o que ele nomeia de “filosofia cristã” pois a filosofia serviu à teologia para a busca pelo divino, pela felicidade. Para o bispo de Hipona, a fé é a via que daria acesso à verdade eterna, contudo a fé era precedida pelo trabalho da razão pois a esta cabe a tarefa de demonstrar o acerto de se crer nas verdades da fé. Dessa forma, nota-se que a relação entre fé e razão se dá de forma dupla: a razão precede a fé e é consequência da fé “Intellige ut credas, crede ut intelligas”.

Modos de vida

O mesmo problema encontrado na filosofia de Platão e de Aristóteles é encontrado em Santo Agostinho: a grande diferença entre contemplação e ação. Detemos-nos aqui à análise dos três diferentes modos de vida e a relação dos mesmos com o problema filosófico da ação e contemplação. Os dois mandamentos cristãos- amar a Deus e ao próximo como a si mesmo- são os discriminadores dos três modos de vida por expressarem a busca pela contemplação do divino e o engajamento no mundo devido à preocupação com o próximo, respectivamente. Os três modos são: o modo de vida ocioso; a vida dos negócios e o a vida mista. O primeiro refere-se à vida dedicada aos estudos da filosofia, à contemplação. O segundo modo de vida diz do tipo de vida que nega o ócio, dá primazia ao ocupar-se com atividades públicas, liga-se à ação. O terceiro modo de vida diz das pessoas que se dedicaram tanto ao ócio quanto ao negócio necessário.

Mesmo que o bispo de Hipona coloque a contemplação como superior à ação, indo ao encontro da teoria de Platão, ele diz que se deve manter um equilíbrio com relação à ação e contemplação. Quando se está a buscar pelo divino, não se deve esquecer de ser útil ao outro quando for necessário. “Se ninguém nos impõe semelhante ônus, devemos entregar-nos à busca e à contemplação da verdade. Se alguém no-lo impõe, devemos aceitá-lo por necessidade da caridade” (AGOSTINHO, 2002, p.411). Mas também não se deve entregar à ação de forma que se esqueça de contemplar a verdade. Amor à verdade é o amor à Deus, o que corresponde à contemplação; o amor ao próximo é o dever que temos de caridade, é ação que nos liga a esse mundo.

Arendt tentou responder, em sua tese de doutorado, à seguinte questão problemática presente na teoria de Santo Agostinho: como se busca algo extramundano – Deus – e se engaja no mundo, concomitantemente? De acordo com a tese de Arendt – O conceito de amor em Santo Agostinho Santo Agostinho compreende os mandamentos cristãos de dois modos e esses tem como fundamento a concepção da dupla origem do homem: a origem do homem em Deus e a origem do homem em Adão.

A felicidade para Santo Agostinho

O problema da felicidade trouxe à Agostinho uma grande motivação para reflexões filosóficas, segundo ele, a própria filosofia serve como instrumento para que o homem atinja a felicidade. A felicidade reside em Deus. Dessa forma, quando se busca àquela, busca-se Este. Quando se procura algo, o que é procurado já é conhecido de quem procura, ou seja, buscamos Deus porque já o conhecemos. Essa busca deve-se dar na memória, em suas profundezas pois “Quem pode sondar até o profundo? Ora, esta potência é própria do meu espírito, e pertence à minha natureza” (AGOSTINHO, 1999, p.268).

Existem duas espécies de memória: a que tem a faculdade das imagens corpóreas e a que tem a faculdade puramente espiritual. Como buscar na memória é inerente ao espírito humano, é nela que acharemos Deus, na memória puramente espiritual. E para encontrar o conhecimento do divino em sua memória, o homem deve realizar uma inspeção nos conteúdos da memória de forma isolada, de forma a se voltar para o interior, o espírito dialoga consigo mesmo visando descobrir a natureza divina perdida: aqui o homem se reconhece como criatura que busca o criador. É na memória espiritual que o homem se depara com Deus.

Após identificar-se como criatura que busca o criador na memória, como criatura que é um ser que tem origem Deus, ama-se o ser do próximo por identificar nele um ser que também é oriundo do ser Supremo. Ama-se, pois, a Deus por amar os seres que dele vem. Ao poder amar ao próximo em seu verdadeiro ser, asseguramo-nos da verdade de nosso próprio ser por sermos todos criaturas. Reconhecer no próximo e em si a origem divina e buscar em si próprio, nas profundezas da memória, o ser Supremo são dois modos de interpretar os mandamentos cristão de acordo com origem divina do homem pois a relação de amor com o próximo é metafísica, extramundana: o outro e eu nos igualamos por termos o mesmo ser, ser esse que participa do criador. Essa descoberta de identidade com o outro só se dá em isolamento contemplativo. “Amar a si mesmo e aos homens não segundo o juízo dos homens, mas segundo o juízo de Deus, significa amar do modo justo” (REALE, 1990, p. 459).

Já a prática que se empreende para amar ao próximo se dá através da compreensão dos dois preceitos cristãos partindo da origem histórica, terrena do homem: a origem em Adão. Partindo desse viés de análise, o outro tem valor estritamente social. O papel que o amor passa a desempenhar é o de ligação para que a sociedade se construa. Aqui a relação de amor com próximo apresenta algumas peculiaridades como a fé comum; a sociedade vai fundar-se sobre a mesma. A fé comum aos cristãos é aquela que diz do fato histórico: a descendência em Adão, a descendência do homem no pecado original.

O pecado de Adão e de Eva acarretaram a transmissão à humanidade do pecado e da necessidade da morte. O pecado original foi a vontade do homem de deixar de amar a Deus. Vale aqui notar que a vontade, faculdade da alma, é que possibilita que o homem se afaste do divino, pois está atrelada à liberdade e à criação. Para que ela exista, há a necessidade da existência do livre arbítrio. Aqui o homem pode desviar-se e tender ao mal – que nada mais é que o não-ser já que o ser, Deus, implica necessariamente o bem pois “ De todas essas faculdades, a mais importante é a vontade, intervindo em todos os atos do espírito e constituindo o centro da personalidade humana. A vontade seria essencialmente criadora e livre, e mela tem raízes a possibilidade de o homem afastar-se de Deus. Tal afastamento significa, porém, distanciar-se do ser e caminhar para o não-ser, isto é, aproximar-se do mal. Reside aqui a essência do pecado, que de maneira alguma é necessário e cujo único responsável seria o próprio livre – arbítrio da vontade humana” (PESSANHA, 1999, p.20). A fé comum no pecado original estabelece que todos somos igualmente pecadores pois temos Adão como origem comum.

O homem, que nada é em si mesmo, não está condenado à aniquilação e ao desespero pois Deus encarna, torna-se mediador ao assumir a natureza humana, embora não deixe que sua natureza divina seja destituída. Deus encarnado torna-se a ponte para a salvação pois só assim o homem pode encontrar sua verdadeira origem- que foi interrompida pelo pecado. “A queda do homem é de inteira responsabilidade do livre-arbítrio humano, mas este não é suficiente para fazê- lo retornar às origens divinas. A salvação não é apenas uma questão do querer, mas de poder. Esse poder é privilégio de Deus. Chega-se, assim, à doutrina da predestinação e da graça, uma das pedras do toque agostiniano” (PESSANHA, 1999, p.21). O que vai permitir, então, que o homem se relacione com sua origem é fato histórico da revelação em Cristo. O filho, que compõe a trindade divina, encarnou com a função de redimir a humanidade do pecado original cometido por Adão e Eva. Podemos notar a intrínseca relação entre a encarnação de Cristo e a origem em Adão pois o primeiro restaura a ponte entre a criatura e Criador; o segundo destruiu o elo entre o homem e o divino.

Com a encarnação do Filho, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo se justifica. A graça deve fazer com que amemos ao próximo como a nós mesmos, estabelecendo uma nova relação de igualdade entre os homens, a igualdade na graça. O outro passa a ter um papel fundamental para mostrar aos homens o seu passado em comum. A doutrina da graça, fundamental para o cristianismo, diz que a salvação não é uma possibilidade humana. A encarnação de Cristo e a revelação são instrumentos indispensáveis para que a deficiência humana- oriunda do pecado original – seja suprimida. Só assim a possibilidade de salvação pode ser restituída (ABBAGNANO, 2007).

A graça faz-se ainda necessária para guiar o livre-arbítrio a distinguir o certo do errado, para alcançar o bem eterno. Ademais, a graça, para Agostinho, é dada por Deus a alguns eleitos, esses estão, portanto, predestinados à salvação. A necessidade de ser humilde faz-se presente após a encarnação de Cristo e o outro traz essa lembrança. Fica ressaltado, pois, o perigo do orgulho já que o próximo pode ainda estar preso ao pecado, ele nos recorda desse perigo e de nossa origem pecaminosa. Ao se deparar com essa situação – na qual o próximo ainda está preso ao pecado – deve-se agir imitando Cristo: o homem deve ter uma conduta cuja finalidade seja a de vencer a cidade terrena, cuja finalidade consista em converter o outro. A relação da criatura com a outra criatura passa a ser como uma passagem para a relação que se dá diretamente com Deus. A finalidade da ação que o mandamento em questão expressa é contemplação:

“No ócio, não se deve amar a inação, mas a busca e encontro da verdade, a fim de cada qual progredir em tal conhecimento e não invejar ninguém. Na ação, não se deve amar a honra ou o poderio nesta vida, porque tudo quanto há sob sol é vaidade, mas o trabalho, de que a honra e o poderio não passam de instrumentos, trabalho em si mesmo, se se propões a justiça e a utilidade, quer dizer, a incolumidade dos que nos estão subordinados segundo Deus” (AGOSTINHO, 1989, p.410).

Logo, pode-se perceber que as formas de entender os mandamentos cristãos, com o homem tendo origem em Adão ou em em Deus, são complementares. O amor ao próximo, de acordo com a origem terrena do homem, é o amor à graça revelada no próximo pela encarnação de Cristo. O que esse amor acarreta é a ação embasada na caridade, na imitação de Cristo. Esse amor passa a ter uma dimensão que nos leva à origem divina do homem, pois ao amar a outra criatura devido à igualdade que com ela guardo, amo- a para que ela e eu nos libertemos da condição em que nos encontramos e, assim, para que busquemos através da reflexão, da interiorização, Deus. Assim, dissolvemos nossa identidade histórica.

A vida ociosa é preferível pois sua dignidade é encontrada na busca pela verdade, contudo Quanto aos três gêneros de vida,[a serem escolhidos por nós] o ocioso, o ativo e o misto, embora, sem prejuízo da fé, cada qual possa escolher o que lhe agrade e chegar por ele aos prêmios eternos, interessa considerar o que o amor à verdade nos dá e o que o dever da caridade nos pede”(AGOSTINHO, 1989, p.410).

Ou seja, não se deve ter uma vida contemplativa de modo que se esqueça de ser útil ao próximo e não se deve entregar à vida dos negócios de forma que se esqueça da contemplação pois “ Amor à verdade busca o ócio santo e a necessidade do amor aceita devotar-se às obras de justiça” (AGOSTINHO, 1989, p.411). Esse amor liga-se à caridade. De qualquer forma, o bispo de Hipona diz que todos os modos de vida visam à salvação, contudo o modo de vida contemplativo é o mais preferível, contanto que não se esqueça do amor ao próximo e todas as ações que esse mandamento implica.

Referências Bibliográficas 

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. AGOSTINHO, S. A Cidade de Deus contra os Pagãos, parte II. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1989.

AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999. PESSANHA, M.A.J. in Confissões. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999

Reale, G. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990.

 

Michelle Vaz é graduanda em Filosofia