Período Histórico

Maquiavel, autor que tomamos como objeto de nosso artigo, viveu em Florença durante um período conturbado. A Itália, que até então não estava reunificada, passava por um processo violento, estava dividida em muitas e pequenas soberanias que guerreavam entre si. Analisando sobre o viés histórico, na época de Maquiavel (1469-1527), os principados estavam sendo formados, havia a luta entre o poder espiritual e o poder temporal.

São oriundos desses problemas sociais os novos problemas propostos pela filosofia política moderna de Maquiavel: “Que faz com que uma sociedade seja una? Porque meios é possível evitar a guerra civil e garantir o poder da coletividade na qual se vive?” (CHÂTELET, 1994, p.73), como se mantém um governo e como se mantém a religião? Como se deve fundar os diferentes tipos de Estados para que eles sejam duradouros e visem o bem comum? Eis aqui alguns dos problemas aos quais Maquiavel faz menção em suas obras O Príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e também responde-os. No primeiro, o autor visa guiar o príncipe em seus comportamentos, por isso é chamado de guia. No segundo, realiza uma investigação sobre a função coercitiva da religião na sociedade, ou seja, como ela pode ser útil à política. Colocando, ainda, os pontos de oposição entre a religião cristã e a pagã.

Nicolau Maquiavel

A Religião

Maquiavel rompe com o pensamento político medieval e com o humanismo cívico. A prática deixa de ser subordinada e guiada pela contemplação – assim como preconiza a religião cristã. Inaugura-se, então, a prática como independente, aqui ela se torna crucial, subordina a teoria e a religião pois, para o florentino, a prática deve ser o centro das preocupações humanas. Contudo, não deve-se perder de vista que a religião tem função e importância para a vida coletiva pois ambas dispõem de um caráter normativo:

“A religião ensina a reconhecer e a respeitar as regras políticas a partir do mandamento religioso. Essa norma coletiva pode assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina militar ou da autoridade política quanto o caráter persuasivo interior da educação moral e cívica para a produção de consenso coletivo” (AMES, 2006, p.51).

Em Discorsi, Maquiavel analisa a utilidade da religião pagã no mundo dos gentios para a política e compara-a ao cristianismo em sua “preguiça orgulhosa”. Os efeitos práticos da religião que devem ser levados em conta, são: a capacidade de despertar nos cidadãos o temor a Deus e o amor dos mesmos no que diz respeito viverem de forma cívica.

A fundação, a estabilidade e duração do Estado não podem depender somente da virtude do príncipe, haja vista que “como os príncipes tem vida curta, o reino só poderá desaparecer logo, ao desaparecer a virtù dele” (MAQUIAVEL, 2007, p.51). Há a necessidade de algo que mantenha o que o príncipe fundou, algo que mantenha a civilidade e a união do Estado: eis aqui a utilidade da religião, que também é útil para manter a obediência do povo à lei civil. O príncipe deve saber usar da fé do povo com essa finalidade. “A salvação da república ou dum reino, portanto, não está em ter um príncipe que governe com prudência enquanto vive, mas em ter um que ordene tudo de tal modo que, morto embora, tudo se mantenha” (MAQUIAVEL, 2007, p.52).

O temor a Deus faz-se indispensável pois só assim submete-se quem deve ser dominado e como o mandamento divino é mais eficaz do que a lei humana, a prudência do governante faz-se necessária para que ele possa usar da religião para dar ânimo e dominar o exército, para ser atendido pela plebe. Aqui reside uma exigência: para as repúblicas ou príncipes que desejam manter-se sem corrupção, devem zelar para que os cultos religiosos não sejam corrompidos. Caso os cultos se tornem corruptos, aí reside o indício da ruína do Estado. Como toda religião tem como fundamento alguma ordenação principal, o príncipe deve conhecê-la e conservá-la. Se assim o fizer, há de manter a religião e a sua república unida. Caso o príncipe acredite que a religião está inteiramente a seu serviço, há de destruir tanto a religião, quanto a crença que o povo tem nela e verá a ruína de seu próprio Estado pois “não pode haver maior indício da ruína de um estado do que o desprezo pelo culto divino” (MAQUIAVEL, 2007, p.52). Nota-se, pois, que se a religião for corrompida, ela perde toda a sua força mobilizadora e, assim, tem-se como consequência a decadência do vivere civile (AMES, 2006.).

Maquiavel usa seu ato de conduzir o povo romano à obediência civil como exemplo da eficácia do bom uso da religião. Encontrou em Roma um povo indomado e desejou conduzi-los às “artes da paz”. Como alternativa à violência, usou a religião para domar e manter a cidade já que o poder de Deus é mais temido que o do homem. “Estas [“artes da paz”], na passagem da obra maquiaveliana citada acima, não consistem em outra coisa senão na religião, apresentada como instrumento capaz de subtrair sentimento da obrigação política do exclusivo domínio da força, e, por isso mesmo, definida ‘como elemento imprescindível para manter a vida civil’” (AMES, 2006, p.55).

Podemos notar que o fundamento religioso de Maquiavel é o temor a Deus. O príncipe deve saber usar dos fundamentos da religião de forma que incuta nos mesmos as necessidades políticas – visando sempre o bem comum – e faça com que as mesmas pareçam ordens divinas. Necessita-se, nesse ponto, da utilização de simulação, juramentos e vaticínios para produzir, através da religião, comportamentos coletivos que sejam úteis à política. Temos como exemplo o disfarce da norma política em mandamento religioso que Numa fez para manter o povo romano obediente às leis.

O fenômeno religioso pode ser entendido de forma diferenciada pelos príncipes e pelo povo. Para o príncipe, a religião consiste em um instrumento político que submete os súditos enquanto que, para o povo, consiste em um temor ao divino e esse temor leva-o a respeitar as leis ao identificá-las com os mandamentos divinos. “O apelo à força irracional da religião converte-se num meio eficiente para o príncipe convencer o povo da legitimidade de suas ações e da pureza de suas intenções” (AMES, 2006, p. 57). O uso prudente da religião garante o êxito do Estado, enquanto sua negação leva à ruína.

Cabe, então, explicitar os expedientes que fazem a religião se tornar um instrumento cuja produção é a de comportamentos individuais e coletivos úteis politicamente. A simulação é um expediente ao qual se recorre quando a autoridade do príncipe não é suficiente para submeter os súditos. Tomemos o exemplo usado por Maquiavel da simulação feita por Numa que, ao perceber que sua autoridade não seria suficiente para fazer suas leis cumpridas, simulou familiaridade com uma Ninfa e agiu como se esta lhe desse conselhos para que ele transmitissem-os ao povo. A verdade da religião não é o mais importante, o que importa é que interpretação da vontade divina seja feita de forma a acarretar o êxito para os propósitos do príncipe, haja vista que estes sempre devem ter como fim o bem comum.

O segundo expediente a ser analisado é o uso dos augúrios e oráculos por parte dos romanos.

Augúrios e Oráculos

Os augúrios não somente eram fundamento em boa parte da antiga religião dos gentios, como dissemos acima, mas também eram a causa do bem-estar da República romana. Por isso, os romanos lhes prestavam mais atenção do que qualquer outra coisa e usavam deles nos comícios consulares, ao iniciar um empreendimento, ao enviar os exércitos, ao travar uma batalha, e em toda ação importante, civil ou militar, jamais levaram a efeito uma expedição sem antes persuadir os soldados de que os auspícios lhe prometiam a vitória (MAQUIAVEL, 2007, p.59).

O que Maquiavel considera um ponto crucial é a ótica dos comandantes ao interpretarem os sinais considerados pelos homens como manifestações da vontade divina. “Como esses sinais nunca se manifestam de maneira clara e acessível a todos, é sempre por uma linguagem cifrada que o divino se comunica com o humano, requerendo a mediação de um intérprete. Este faz os sinais significarem aquilo que convém àqueles que comandam” (AMES, 2006, p.60). Entende-se, então, que em toda a ação importante tanto militar quanto civil, os augúrios faziam-se inteiramente necessários. Através deles, os governantes justificavam suas ações e ordens, mantinham a coesão social.

O terceiro expediente são os juramentos. A dimensão religiosa destes é determinante com relação à política. Tomemos como exemplo a situação na qual a plebe não tem razões para defender a pátria ou amar a mesma e suas leis e tenta fugir para outro território. Cipião vai atrás dos fugitivos e faz com que jurem que não abandonariam a pátria. O juramento serve aqui para coagir a plebe de que é necessário amar a pátria, respeitar suas leis e defendê-la, ou seja, torna-se instrumento de caráter coercitivo – o qual une o povo de forma que se torne útil à política, ao bem comum.

Maquiavel, que talvez possa ser visto como um representante da História Magistra Vitae, busca na religião romana um exemplo de ação, um exemplo de religião que incita a busca da honra e da glória nesse mundo, a defesa da pátria, a civilidade – pois a religião pagã é vista por ele como instrumento da política. Por outro lado, ele toma o cristianismo como o oposto dessa religião cívica. Diz que a religião cristã incita a vida ociosa, egoísta, que se volta para o mundo do além e que nele busca seus valores. A ação cristã visa sempre a contemplação, a fuga do mundo e a salvação egoísta por não se importar com a salvação da pátria mas sim com a salvação individual; os homens contemplativos são glorificados (ARENDT, 2007). O sumo bem passou a encontrar-se no desprezo pelas coisas humanas e sociais, há a renuncia da luta por esse mundo, ao contrário dos pagãos, que viam o sumo bem da grandeza de ânimo, na fortaleza corporal, que viam na religião uma fonte de inspiração para executar e exaltar o serviço à pátria; que glorifica o homem virtuoso, que busca a glória e a fama. O cristianismo deixou de estimar as honras desse mundo.

A desunião da Itália, de acordo com o florentino, tinha como causa a dominação cristã:

É que a Igreja mantém esta terra dividida. E, realmente, terra alguma jamais foi unida ou feliz, a não ser quando inteiramente submetida a uma só república ou a um só príncipe, como ocorreu com a França e com a Espanha. E a razão de a Itália não estar nas mesmas condições e não ter uma só república ou um só príncipe para governá-la é somente a Igreja: porque tendo ela aqui estabelecido sede e governo temporal, não teve força nem virtù suficiente para ocupar a tirania da Itália e tornar-se seu príncipe, enquanto, por outro lado, não foi bastante fraca para, por medo de perder o domínio de suas coisas temporais, convocar a ajuda de algum poderoso que a defendesse contra aquele que se tivesse tornado poderoso demais na Itália[…] (MAQUIAVEL, 2007, p.55).

A diferença que reside entre a religião romana – corrompida – e a religião pagã – virtuosa – é a educação. O mundo moderno tornou-se impotente no âmbito político devido à religião cristã. Esta foi sendo ensinada de forma que cindiu seus propósitos das necessidades humanas, voltando-os apenas para a contemplação, interpretando esta de acordo com o ócio, mas não segundo a virtù.

Dessa forma, podemos resumir a crítica de Maquiavel à Igreja em quatro pontos principais:

o comportamento do clero – tais como simonia, relaxamento dos costumes, uso da religião em benefício próprio – acarretou o enfraquecimento do sentimento religioso; a utilização do poder temporal pelos papas acarretou a divisão dos Estados italianos – já que os papas enfraqueceram os territórios italianos e pediram auxílio de potências estrangeiras para assegurar o poder; a sede de poder do papado teve como consequência a ruína moral da Igreja, “haja vista que os povos mais próximos da Igreja romana, capital de nossa religião, são os que tem menos religião” (MAQUIAVEL, 2007, p.54), nota-se que ao misturar poder espiritual ao temporal, a missão espiritual da igreja é perdida; e a quarta crítica é a de que a Igreja é um empecilho para a reunificação da Itália.

O florentino considera a religião cristã como corrompida, como afastando-se da sua necessidade de retornar ao seu princípio, pois como toda religião e instituição estão sujeitas à geração e à corrupção, devem retornar às origens e renovar suas bases. Dessa forma, pode-se notar que os Estados dominados pela Igreja encontrarão como fortuna a ruína, a decadência.

Abordamos, portanto, nesse trabalho a visão maquiaveliana da ação e da contemplação: sendo que a primeira submete a segunda como instrumento da política. Explicitamos também a relação existente e íntima entre a religião antiga e a ação política e sua oposição com o ócio contemplativo preconizado pelo cristianismo. Logo, podemos perceber que Maquiavel critica profundamente o cristianismo e sua inação, e que toma como modelo a religião pagã em sua utilidade política pois manteve a coesão social e a dominação dos povos de forma efetiva, haja vista que o Estado depende da religião para que seja duradouro mesmo com a morte do príncipe.

 

Michelle Vaz é graduanda em Filosofia