A sistematização aristotélica

Aristóteles foi responsável pela sistematização do conhecimento e pela divisão dos campos de saber. As ciências são, pois, divididas em três grupos: as ciências poiéticas, as ciências práticas e as ciências teoréticas. Uma das principais formas de distinguir os campos do saber é oriunda no télos, ou seja, da finalidade pois cada ciência visa um diferente fim, tem como objeto de análise diferentes matérias e, dessa forma, devem ser distinguidas e consideradas de acordo com critérios próprios.

As ciências poiéticas- assim denominadas devido ao fato de que poiêsis tem origem no grego e significa criar, fabricar, fazer- tem sob seu domínio as artes e as técnicas de fabricação de um produto, de uma obra. A finalidade das mesmas é fabricar algo que tenha como resultado um objeto que seja diferente do agente, a ação do agente é diferente do agente. Essas ciências lidam com a contigência, com o devir, com o mutável. Enquadram-se aqui a arquitetura, a medicina,a economia, a arte da guerra, a pintura, a navegação e a escultura.

Dentro das ciências práticas, estão a política e a ética-sendo a segunda englobada pela primeira. Esses saberes ligam-se às atividades práticas, ou seja, as mesmas são a finalidade destas ciências. As atividades práticas, por sua vez, ligam-se à conduta do homem, ao fim que essa conduta leva, dizem do devir. A política é a ciência prática suprema e todas as outras lhe são subordinadas e e auxiliares, inclusive a ética: ”Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e mais verdadeira que se possa chamar a arte mestra.

Ora a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais ciências devem ser estudadas num Estado[…]”(ARISTÓTELES, 1973, p.49). Só a ciência política pode dizer qual deve ser o objeto de estudo (qual ciência), quem deve estudá-las e até que ponto se deve estudá-las. Só ela pode dizer o que devemos fazer ou não por estabelecer as leis. Tem como telos o bem- comum cuja constituição é dada pela liberdade e pela justiça.O homem é o agente e ele próprio sofre a reação de sua ação.

O indivíduo possui relação intrínseca com o Estado já que este é mais importante que o indivíduo(ROSS, 1987). Apesar de todas as divergências entre as teorias do Estagirita e de seu mestre, Platão, há aqui um ponto de convergência que vale ser ressaltado: Nessa subordinação da ética à política, incidiu clara e determinantemente a doutrina platônica que amplamente ilustramos, a qual, como sabemos, dava forma paradigmática à concepção tipicamente helênica, que entendia o homem unicamente como cidadão e punha a cidade completamente acima da família e do homem individual: o indivíduo existia em função da Cidade e não a Cidade em função do indivíduo (REALE, 1994, p.405).

Pintura de Platão e Aristóteles

Nota-se que a ética do Estagirita é teleológica porque visa atingir os primeiros princípios partindo do que nos é familiar As razões éticas consistem, não em partir dos primeiros princípios, mas sim em atingi-los; ela parte, não do que é inteligível em si próprio, mas do que nos é familiar,isto é, os factos puros e procede respectivamente destes até às razões que lhes são subjacentes; e para obter o conhecimento necessário dos factos, é necessária uma boa educação (ROSS, 1987, p.195).

A ética usufrui da dialética, até certo ponto, para atingir,então, os princípios. Tem como fim o bem do homem- que seria composto pela felicidade e pelas virtudes morais pois o homem virtuoso é feliz. De acordo com Aristóteles, toda a ação do homem visa o bem e os homens que se encontram na atividade política visam a honra, embora esta não possa ser o fim último pois o fim último é a felicidade e a felicidade é algo exterior. O bem supremo, à que tende toda ação, não pode ser como o Bem transcendente platônico, deve ser um bem realizável pelo o homem, deve ser o Bem imanente. Esse Bem é polívoco, diferencia-se em várias categorias e nas diversas realidades que estão em contato com essas variadas categorias. A ligação dos mesmos se dá por analogia.

O Estagirita questiona no que consiste o bem, qual bem é realizável pelo homem. Sua resposta se dá da seguinte forma: o bem do homem consiste na obra que lhe é peculiar e que só ele pode realizar- a razão e a atividade da alma segundo a razão. O bem do homem consiste nessa atividade da razão, em seu perfeito desenvolvimento e atuação; essa é a virtude do homem e é a mesma que ele deve buscar. O homem virtuoso deve obrar de acordo com o bem e com o belo.Os seus verdadeiros valores estão na alma.

As outras ciências são as teorética, que são superiores às ciências práticas e às ciências políticas, embora estas não estejam em detrimento daquelas. As ciências teoréticas estudam as

coisas que não foram fabricadas pelo homem, coisas que escapam ao mundo sensível e que, logo, só podem ser contempladas. Os objetos de contemplação são as coisas divinas e a natureza. São coisas que existem por si mesmas e em si mesmas. As mesmas também são submetidas à uma hierarquização: as coisas divinas são superiores às naturais. O que é divino é imutável, não se submete ao mundo do devir, do fazer. São inalteráveis, são- não tem potência de ser.

A alma para Aristóteles

A alma se divide em três partes, de acordo com o Estagirita: duas partes são irracionais- a alma vegetativa e a alma sensitiva; e uma parte é racional- a alma intelectiva. Cabe à alma a atividade intelectiva, contemplativa e a finalidade dessa atividade é “assimilar-se a Deus”, contemplar o verdadeiro como Deus o contempla,ou seja, contemplar o próprio Deus- que é a suprema racionalidade (REALE,1994). Dentre os objetos de estudo das ciências teoréticas, estão a matemática, a física e a filosofia pura.

Após conhecermos as três ciências apresentadas por Aristóteles, chegamos, enfim, aos três modos de vida que fazem referências às mesmas: o modo de vida prazeroso e agradável; o modo de vida político e o modo de vida contemplativo. Esses modos de vida só podem ser adotados por homens livres das necessidades biológicas, livres de ter que produzir o que será útil para o outro. O Estagirita não considera homens livres os escravos, por razões óbvias, os artesãos por terem de produzir algo útil para o outra pessoa; e as mulheres por terem de se ocupar com a vida doméstica e com as necessidades da família; elas ainda vivem de acordo com as necessidades biológicas.

O modo de vida prazeroso equipara-se ao modo de vida de um animal irracional, o homem passa a existir como mera coisa viva ou inanimada, não desempenha seu papel especificamente humano.Vive como um vegetal, não participa da esfera pública. Tem sua vida voltada ao gozo.”A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial[…]” (ARISTÓTELES, 19973, p.252).

O modo de vida político exige que o homem, animal político (zoon politikon), faça política e tenha ação ética pois sua natureza é de um ser político; o termo “político” se origina da palavra politeia e refere-se a todos os procedimentos feitos na polis grega. O melhor espaço para que o homem cumpra sua função é na polis, é nela que ele pode se expressar, expressar o que se é, mostrar seu caráter e suas virtudes.

A polis é o espaço das aparências: nela o homem aparece aos outros e os outros a ele (ARENDT, 2007). Só o homem pode se ocupar com os negócios públicos e com a polis, já que ela é sua criação. O homem político ocupa-se com o belo, com os belos feitos que realizou, de forma virtuosa, na vida política. Esse homem lida com o contingente que se realiza através das ações humanas. O homem político visa a honra e o reconhecimento público de suas virtudes e bondade “[a honra] no entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado” (ARISTÓTELES, 1973, p.252). Através de sua ação guiada pelo justo meio, deve buscar o bem comum pois é estruturalmente político e a política se dá em pares no espaço comum (ARENDT, 2007).

Assim, ele necessita dos outros e bem-comum deve buscar. O modo de vida contemplativo cabe ao filósofo. Ele se volta para contemplação do divino, das coisas naturais. Ocupa-se com o belo eterno, ocupa-se das coisas necessárias, ocupa-se da verdade, da razão suprema- Deus. Para se adquirir o modo de vida contemplativo e também o modo de vida político, fazem-se necessários o hábito, a experiência e o tempo pois o homem não nasce virtuoso, ele tem potência de ser. A prática é que vai fazer com que a virtude se desenvolva.

As virtudes éticas são várias e derivam de nossos hábitos pois temos a potência de formar o hábito em nós, por natureza. Se exercitarmos, fazemos com que essa potencialidade se torne atualidade (REALE, 1994). Há a necessidade, ainda, da mediania pois a virtude implica-a e é a justa medida imposta pela razão aos sentimentos, ações ou atitudes. Através do viver e do obrar bem, o homem encontra a felicidade.

Dessa forma, podemos notar o que cada tipo de saber e o que cada tipo de vida atribuída ao homem – por Aristóteles – visa. Podemos resumir que o que toda ação visa é a felicidade “[…] o bem é aquilo a que todoas as coisas tendem” (ARISTÓTELES, 1973, p.49). Assim, de acordo com suas específicas obras, cada um dos três tipos de homem busca o bem supremo seja no âmbito político e ético, seja no âmbito contemplativo ou seja ainda no âmbito do prazer, o qual também se agrega ao termo felicidade. Aristóteles não renega de todo o prazer, desde que seja em justa medida pois “A obra humana cumpre-se através da sabedoria e da virtude ética: de fato, a virtude torna torna reto o fim, enquanto a sabedoria torna reto os meios” (ARISTÓTELES apud REALE, 1994, p.418).

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

REALE, G. A História da Filosofia Antiga. v.II. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

ROSS, D. Aristóteles. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.