O Processo criativo e a expressão artística como manifestações da Alma

O que torna nós, humanos, seres com alto potencial criativo? Como surge a inspiração para escrever um magnifico poema, ou compor uma melodia, ou até mesmo pintar um quadro que possa ser a melhor expressão do que sentimos? Será mesmo que todas essas manifestações são simplesmente pura “invenção” racional?

O psicólogo Carl Gustav Jung afirma que a escolha do tema ou a inspiração que brota na mente do autor advém de processos inconscientes, são produzidos pela necessidade de criação que é inerente a natureza humana, ou seja, a produção tanto de um sonho e fantasia, quanto de uma obra de arte, fazem parte de um processo criativo que de forma alguma pertencem ao artista ou ao sonhador.

O material que se apresenta ao individuo advém dos processos autônomos da psique, e desta forma, quando este material surge na consciência o individuo não tem qualquer controle sobre ele, só lhe resta acatar as imagens e expressá-las da melhor forma que ele conseguir.

Jung já afirmava que não somos nós quem escolhemos os conteúdos, como no caso do tema de uma pintura, ou de uma musica, ou até mesmo a produção de um trabalho acadêmico (monografias, teses e dissertações), mas os conteúdos que nos escolhem. Em todo caso, é através de sua intuição que artista mergulha nas fontes criativas da psique coletiva, e é deste rico mundo que se apresenta a ele que vem a matéria prima de seu trabalho. “Para Jung as fontes da capacidade de criação estão contidas nesse inconsciente impessoal, coletivo, de onde emerge o novo. O artista é levado a imergir no manancial dessas forças criativas que é patrimônio da humanidade e, delas, configurar sua obra” (PERRONE, s/d, p. 5).

Portanto, a obra de arte é vista pela psicologia junguiana como manifestação dos complexos autônomos do inconsciente coletivo, ou seja, os arquétipos, que nada tem haver com os ímpetos pessoais ou complexos pessoais. Os arquétipos representam os impulsos instintivos do homem coletivo, deste modo, quando surge na sociedade uma obra de arte, trata-se antes de uma expressão de conteúdos que repousam nesta camada inconsciente comum a todos os seres humanos.

Acredito que não é difícil perceber o impacto que sentimentos quando olhamos para uma expressão artística, seja ela um quadro que nos paralisa, ou uma música que nos emociona tão profundamente a ponta de chegarmos a afirmar – “isto expressa o que eu sinto”. Ou até mesmo quando saímos chocados ou maravilhados com as cenas de um filme. É ai, neste ínfimo instante de tempo que nossas vidas parecem se encontrar, se tornam de fato comuns, e todos aqueles que estão a nossa volta parecem compartilhar do mesmo sentimento e sensação. Isso é coletivo, isto é o profundo “toque na alma” que só o artista consegue trazer a tona.

“Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado”. (JUNG, 2011, p. 83)

A arte também possui suas manifestações em quem é escolhido para manifestá-la. O espírito criativo no artista é visto como um instinto inato que o impele a criar e a produzir, como uma espécie de fome avassaladora que precisa ser satisfeita. Deste modo, a produção da obra de arte não possui um vínculo com a história de vida ou a personalidade do artista, a função deste é simplesmente dar forma aos conteúdos, inserindo-os na sociedade, o que faz com estes conteúdos recebam uma construção racional e modelada por um contexto social.

“[…] a psicologia do artista constitui um assunto coletivo e não pessoal. Isto porque a arte, nele, é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento. Em última instância, o que nele quer não é ele mesmo enquanto homem pessoal, mas a obra de arte. Enquanto pessoa, tem seus humores, caprichos e metas egoístas; mas enquanto artista ele é, no mais alto sentido, “homem”, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade”. (JUNG, 2011, p. 104)

Visto que, a produção artística é considerada na psicologia analítica como manifestação da realidade psíquica, e esta realidade possui o caráter do inefável, contendo as mesmas características de um objeto sagrado, a expressão artística também é vista de certa forma, como religiosa e sagrada. Assim, deve ser acolhida da mesma forma que um objeto religioso.

Muitas vezes as expressões que não apresentam uma temática explicitamente religiosa possuem como pano de fundo, um conteúdo extremamente religioso. Seja qual for a forma assumida pela produção artística, ela sempre se articula em uma cultura, e suas interpretações partem sempre de uma identificação simbólica como tentativa de compreensão. A articulação da expressão artística só pode se dar na cultura, assim como, não pode haver religião sem cultura, pois elas estão intrinsecamente ligadas e dependentes. As manifestações de uma são moldadas pela outra, a cultura também é estruturada de acordo com os preceitos religiosos juntamente com os impulsos do inconsciente coletivo. Assim também ocorre na arte, pois, embora os conteúdos sejam de uma realidade transcendente e divina, a forma precisa se adequar aos limites físicos e aos materiais utilizados.

“Tudo o que se quer dizer sobre esse ‘sagrado’ deve ser [será dito] em categorias racionais, portanto culturais. Aí, já se trata de outro momento, que é o momento hermenêutico, o momento do desdobramento da experiência nas fraldas da respectiva cultura de um povo. Usa-se aí de analogias, metáforas, símbolos, etc., que são, no seu conjunto, espécies de gênero da linguagem da experiência religiosa”. (RAIMER 2010, p.4)

Embora o contexto da época também seja importante, a arte não tem data de validade, sua expressão simplesmente atravessa a linha do tempo, ela manifesta tanto o hoje, como o que está por vir, e sempre estará a frente de qualquer interpretação ou racionalização. Deste modo, Jung defende a necessidade uma atitude simbólica por parte de quem observa, ou seja, não devemos desconsiderar nada do que é apresentado, e não temos o direito julgar o conteúdo.

É nítida a importância que Jung atribui a questão de observarmos a imagem, seja uma pintura, escultura ou até mesmo na música, onde muitas vezes evocam nossas lembranças ou até mesmo cenas que simplesmente surgem em nossa mente. Seja qual for a forma de manifestação, sempre teremos uma imagem sobre o fato, e esta imagem por si só já se mostra do jeito que tem que ser, cumprindo muitas vezes o papel que lhe cabe, ou seja, enquanto arte e nada mais.

“Por sobre todo o processo, paira uma precognição obscura, não só daquilo que vai tomando forma, mas também de sua significação. A imagem e a significação são idênticas, e à medida que a primeira assume contornos definidos, a segunda se torna mais clara. A forma assim adquirida, a rigor, não precisa de interpretação, pois ela própria descreve o seu sentido”. (JUNG 2011, p.152)

Como diria um sábio professor meu – “A arte só pode servir a ela mesma, pois de outra forma, ela deixaria de ser arte.”

Referências:

· PERRONE, Maria Paula. A Imaginação Criadora: Jung e Bachelard.

· JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. O.C. vol. 8/2. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 4° edição. 2011

· JUNG, Carl Gustav. O Espírito na Arte e Na Ciência. O.C. vol. 15. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 4° edição. 2011

· REIMER, Haroldo. O Sagrado em Rufold Otto. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Programa de Pós Graduação em História. 2010

Bruno Portela é Mestre em Ciência da Religião pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro. Professor do curso de Psicologia no Centro Universitário Fundação São José. Psicólogo clínico com consultório em Itaperuna-RJ.