Na autobiografia de Jung, lemos um sonho que se faz muito importante para compreendermos a noção de arquétipo e de inconsciente coletivo. 


Embora as traduções dos livros de Jung sejam boas, qualquer tradução é uma interpretação do texto original. Assim, por exemplo, o título da autobiografia foi traduzido por Memórias, Sonhos e Reflexões. Em alemão, no original, o título é Erinnerungen, Träume, Gedanken – cuja melhor tradução seria Lembranças, sonhos e Pensamentos. 


Veja a análise do sonho abaixo:

Um dos capítulos da autobiografia de Jung se intitula “Confronto com o Inconsciente”. Neste texto do Erinnerungen, Träume, Gedanken von C. G. Jung, que gosto de pensar como Lembranças, sonhos, pensamentos de C. G. Jung, o título é “Die Auseinandersetzung mit dem Unbewussten”.

O título é em certo sentido intraduzível. Heidegger traduz a palavra grega polemos como Auseinandersetzung. Temos, por exemplo, Τρωικός πόλεμος, a Guerra de Tróia. Em Heráclito, que Heidegger traduz, a ideia é de guerra e de conflito. Mas os dicionários também traduzem Auseinandersetzung como debate, discussão, confronto, disputa, argumento, analise, briga, diferença, partição. A tradução que temos, então, de Confronto com o Inconsciente não é incorreta. Mas descobri que ela não é sutil, se analisarmos mais profundamente. Para um nativo do alemão, a palavra Auseinandersetzung, acredito eu, remete à idéia de separação. Ela é uma grande junção de palavras:Auseinandersetzung = Aus + ein + ander + setzung. Cada palavra tendo um sentido: Aus (fora, para fora, como o out no inglês); ein (o artigo indefinido um, eine é uma, o numeral um é eins); ander (outro) e setzung (colocar). Deste modo, Auseinandersetzung poderia ser traduzido por “pegar um e colocar o outro para fora”. Como se de dois elementos, de dois objetos, a gente pegasse um e levasse para longe: colocar para fora um com relação ao outro. Essa é a ideia literal, separar, desfazer o par. Jung utiliza a palavra Auseinander no interior do texto, em uma passagem que se faz, portanto, essencial. Jung a utiliza quando conta o sonho que lhe leva a desenvolver a teoria dos arquétipos (Archetypenlehre).O sonho é aquele no qual Jung considera que havia resolvido as fantasias de algo morto que ainda vivia, como na fantasia de que “corpos eram colocados em fornos crematórios e descobria-se que eles continuavam vivos.” Traduzi abaixo o sonho:“Eu estava em uma região, que me fez lembrar dos Alyscamps em Aries. Lá pode ser encontrada uma alameda de sarcófagos, que vem desde o tempo dos merovíngios. No sonho eu vinha da cidade e via a minha frente uma alameda similar com uma longa fila de sepulturas. Havia sepulturas com lajes de pedras sobre os quais jaziam os mortos. Lá estavam eles com suas roupas velhas com as mãos dobradas como os antigos cavaleiros nas velhas capelas, com a diferença de que os mortos em meu sonho não eram de pedra, mas eram mumificados de uma forma estranha. Na frente do primeiro túmulo eu parei e observei o morto. Era um homem da década de 30 dos século XIX. Interessado, olhei para sua roupa. De repente ele começou a se mexer e estava vivo. Ele separou suas mãos, e eu sabia, que ele o tinha feito porque eu o tinha olhado.Com um sentimento desprazeroso eu segui em frente em direção a outro morto, que pertencia ao século XVIII. Lá aconteceu o mesmo: quando eu o olhava, ele se tornava vivo e mexia as mãos. Então eu percorri toda a fila, até chegar ao século XII, cujo morto era um homem das Cruzadas vestindo uma cota de malha, que também estava com as mãos postas. Sua forma parecia como que talhado em madeira. Por longo tempo olhei-o, convencido de que ele estava realmente morto. Mas de repente eu vi que um dedo da sua mão esquerda começou a se mover lentamente” (JUNG, 1983, p. 176)O trecho onde Jung utiliza Auseinander é o seguinte “Ele separou suas mãos, e eu sabia, que ele o tinha feito porque eu o tinha olhado”. Em alemão: “Er nahm die Hände auseinander, und ich wußte,daß das nur geschah, weil ich ihnanschaute”. Podemos pensar em uma tradução mais literal, ligada ao corpo, como “Ele abriu os bracos” ou talvez “Ele se abriu”. O que nos faz pensar em um titulo não como “Confronto com o Inconsciente” mas como “Abertura para o Inconsciente” ou “Colocar-se aberto ao Inconsciente”. A palavra expor, de por para fora, aussetzen, exposição, ex-por. Como colocar para fora algo do inconsciente, ou ainda, pensando o contexto da morto-vivo, colocar o vivo para fora, cumprimentar o que esta vivo no passado. Nos mortos ainda vivos, dos séculos passados.Há ai uma relação clara com o arquétipo, pensando na palavra arkhé. Como algo arcaico, antigo – Jung utiliza a palavra relíquia em uma passagem próxima -que, parecendo morto, no entanto, e vivo. O titulo, portanto, não tem a ideia de confronto, de embate ou guerra, denotando mais a ideia de o inconsciente se expondo, exposição do inconsciente e de abertura ao inconsciente, como quem abre os braços para abraçar.