1. Psicose e interpretação    

Os pacientes psicóticos possuem a peculiaridade de revelar aquilo que os neuróticos se esforçam, interminavelmente, em guardar segredo. Com essa afirmação, Freud, não só abre a sua análise de “Memórias de um doente dos nervos’, livro de Daniel Schreber, bem como aponta para uma dificuldade inerente à análise de pacientes psicóticos; aquela decorrente da dimensão eminentemente interpretativa do discurso psicótico. Significa dizer que, em razão do caráter interpretativo da psicose, o analista, ao empreender uma análise nestes pacientes, se expõe ao risco de ser interpretado, ao invés de interpretar (o que seria o ato analítco per si), e de passar, assim, à posição de analisando.

Tentemos fundamentar melhor esta dimensão interpretativa do discurso psicótico. Primeiramente, devemos considerar que um neurótico procura uma análise em função de um sintoma que lhe causa sofrimento, pois que ele não lhe compreende o sentido; em outros termos, ele faz determinada coisa que lhe causa desprazer e que, não obstante, não consegue deixar de fazer. Assim, o neurótico chega ao analista pedindo-lhe que decifre o sentido de seus atos sintomático, ou seja, é a um Outro que a mensagem do sujeito se dirige, e é dele que, portando, deve advir a resposta. Esta situação expressa, manifestamente, a divisão subjetiva, o processo de recalque, ou se preferirmos, a operação de castração, que caracteriza a estrutura psíquica do neurótico. Decorre, portanto, que a interpretação do analista incide, precisamente, sobre o material recalcado, sobre as resistências do sujeito quanto a seu desejo.

Ora, se o que caracteriza a psicose é justamente o fato de não ocorrer a operação de recalque, a instauração da lei simbólica, lugar do Outro, que divide o sujeito, então o princípio de que a interpretação analítica deva incidir sobre o material recalcado torna-se, extremamente, problemático. A ausência do recalcamento, na psicose, manifesta-se, por exemplo, na ausência de dúvidas do paciente quanto ao que diz, ao que faz, e às razões pelas quais o faz. Dessa maneira, enquanto o neurótico sublinha seu discurso de dúvidas – e é precisamente isso que o conduz a uma análise, sua dúvida quanto ao sentido de seu sofrimento -, o psicótico em nenhum momento recua quanto à legitimidade de suas teorias; não há o que escape à sua compreensão.

Neste sentido, no discurso psicótico não aparecem as hiâncias, a falta de sentido, a partir das quais a interpretação analítica se estabelece. Não há, portanto, a questão a partir da qual opera o dispositivo analítico da transferência: a questão dirigida a um Outro que supostamente detém a resposta. Na psicose, ao contrário, é o paciente que se coloca como o Outro, no caso de Schreber, como Deus. Um dos elementos fundamentais no sistema de Schreber, como mostra Freud, é a sua assunção no papel de Redentor; a consideração de que a Ordem das Coisas está do seu lado. Diante disso, devemos, antes de empreender uma análise com pacientes psicóticos, e esta não é outra que não a função das entrevistas preliminares, nos colocar a questão das possibilidades de conduzi-la no sentido estrito do que seja uma psicanálise. Lacan admitia ter curado psicóticos, sem , no entanto, saber como o fez.

2. As relações entre a psicose e a escolha objetal homossexual

Em Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença, Freud elabora considerações importantes para a compreensão dos mecanismos envolvidos na paranóia. A partir do relato de uma mulher acerca de seus delírios paranóicos, Freud se propõe a analisar a consistência da hipótese segundo a qual a gênese das paranóias estaria estritamente vinculada a uma escolha objetal homossexual. Este relato parece, a princípio, tornar ilegítima tal afirmação. De maneira resumida, trata-se de uma mulher de 30 anos que, durante um encontro secreto com um amante, e conjugando uma série de eventos acidentais, chega à conclusão de que este homem pediu a um outro que fotografasse o encontro dos dois, para, com estas fotografias, força-la a abandonar o emprego ao qual mantinha enorme apreço.

Inicialmente, a hipótese de que uma escolha homossexual seria fundamental na formação dos delírios paranóicos parece improvável, visto que é um homem que, no relato, assume a posição de perseguidor. No entanto, observa Freud, uma descrição mais pormenorizada dos fatos poderia esclarecer melhor tal situação. Neste sentido, pede à mulher um outro encontro para que esta possa lhe fornecer mais elementos ou acrescentar detalhes que, eventualmente, tenham sido omitidos. No segundo relato, diz, a história foi a mesma, mas alguns detalhes adicionais “dissiparam todas as dúvidas e dificuldades” (p. 300). Em resumo, a mulher não contara no primeiro relato que haviam sido, não um, mas dois encontros, e que, entre o primeiro e o segundo, o homem havia aparecido na firma em que ela trabalhava para tratar de assuntos comerciais com a sua chefe, uma mulher de cabelos brancos como sua mãe, e por quem mantinha enorme respeito e gratidão.

Para Freud, está claro que a chefe de cabelos brancos era a substituta da mãe e que “o amante fora posto no lugar do pai dela” (p. 301). Dessa maneira, é a mãe, na figura da chefe, quem aparece como agente da perseguição; é ela quem desaprova a relação da moça com um homem. Assim, diz Freud, “seu amor pela mãe se tornara o porta-voz de todas as tendências que, desempenhando o papel de uma ‘consciência’, procuram embargar o primeiro passo de uma moça na nova estrada que leva à satisfação normal” (p. 301). É importante observar que é através deste encontro com a chefe-mãe que o amante desempenhara a função de perseguidor. Neste sentido, mantém-se, segundo Freud a vinculação da relação homossexual, ou da escolha objetal homossexual na formação do delírio de perseguição.

Autor – Juliano Lagoas